JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Seu Julim e o prazer em fazer a felicidade dos outros

Dia da criança como muitos nunca tiveram.

Depois do almoço preparado por Joana, que resolvia abater três ou quatro galinhas bem cevadas no quintal, e algo mais que se fizesse necessário para preparar a cabidela, arroz novo torrado e socado no pilão, e depois lavado na arupemba (uma espécie de peneira fabricada pelos indígenas) sem tirar aquele gosto de queimado, farinha seca crocante, feijão de corda verde com quiabo, maxixe e jerimum, além de um gostoso pirão escaldado.

Tava pronto o almoço para os parentes e a meninada que se preocupava mais nas brincadeiras da roça que em ganhar presentes da Estrela, como acontece hoje. Se bem que os brinquedos da Estrela foram substituídos pelos celulares, tabletes e autorizações para baixar os aplicativos.

As crianças têm novos hábitos. Os pais são outros. A maioria afeita à transferir responsabilidade na estruturação da família. Escancaram as portas para o Estado, e depois usam uma lupa na procura do culpado.

Almoço servido e comido, as redes são armadas na latada e no alpendre comprido da casa. É naquela rede que a gente ficar tacando o pé na parede, e aproveita pra coçar as frieiras dos dedos nas beiradas da rede tijubana e ficar escutando aquele rangido do armador como se fora um besouro mangangá.

Não tive e jamais terei vida melhor. Que aconteçam tantos e tantos Dia da Criança.

No finzinho da tarde, com o sol ainda morno, mas de quando em vez a gente escutando o barulho do chocalho preso no pescoço do bode no chiqueiro, a cadela Pintada se despedaçava na direção da porteira e se danava à latir. Chamando a atenção de todos que estão no alpendre se balançando nas redes.

– É seu Julim!

Apois, Seu Julim, em todo Dia das Crianças se dava ao trabalho de selar um burro formoso e trotar mais de dez léguas – tudo prumode ter o prazer de contar histórias e algumas estórias para a criançada. Tinha até criança que se banhava e arrumava todim, butando brilhantina nos cabelos, prumode ficar assentado e quietinho escutando as estórias de Seu Julim.

Logo que apeava do burro e o acomodava para descansar e beber água, Seu Julim achava bonito e educado cumprimentar os adultos da casa, um por um, e só então dizia o que fora fazer.

Antes de deitar na rede para balançar, Vovô João Buretama tinha a obrigação de preparar o tamborete que Seu Julim usaria para sentar e entreter a criançada. Também fazia questão de manter algum tição aceso em brasa no fogão. Era o tição que Seu Julim usaria para acender o fumo do cachimbo.

Tamborete posto e Seu Julim sentado. Agora era picar e socar o fumo no cachimbo, enquanto as crianças se aproximavam, uma a uma para sentar numa roda em forma de arena.

Tição no cachimbo e uma sugada. Tição de novo no cachimbo, até que a brasa quebrava e caía. Mas o fumo do cachimbo estava aceso.

– “Era uma vez, um Rei de uma cidade muito distante!…….”

– Seu Julim, essa estória aí o sinhô já contou!…… garantia Moisés, um dos mais antigos que já desfrutara das tardes do Dia da Criança em pelo menos três oportunidades.

– Já contei? Mas vou contar de novo, pois você drumiu antes deu acabar de contar!

Longe dali, com a penumbra da noite chegando, o sonoro e triste cântico do vem-vem dava a garantia que todos estavam mesmo era na roça, e não num shopping cheio de barulho e escadas rolantes. Muito movimento, mas sem a vida que nos faz bem e amamos.

6 pensou em “SEU JULIM E O DIA DAS CRIANÇAS

  1. Um milhão de arre-éguas para os Julins que cruzam nossos caminhos… Olho “Seu Julim” e recordo todos com que convivi neste 57 anos de existência sanchiana. Não, não foram poucos. Sim, foram muitos. Gente sábia. Gente que quando arremessa o fio de um “causo” o estende por quilômetros de prosa. Gente que desfila sabedoria nas estradas da vida. Quanta carona dei em meu caminhão a esses homens de grande saber e pouca escola. Agradeço a todos por terem feito a viagem mais alegre…

    Abençoado Brasil onde todas as cores e povos se misturam em harmonia… ri Sancho. Por que os imbecis sempre riem?

    • Sancho: ouvi, faz tempo, que o riso fácil é uma permanente louvação ao Palhaço e uma completa e louvável ducha às artérias do corpo humano. Quando alguém ri, bombeia e oxigena sangue até nos pés! Será?

  2. Parabéns pelo lindo texto, prezado José Ramos! Imagino a alegria da meninada, sentada ao redor de Seu Julim, ouvindo-o contar suas histórias, como presente do Dia da Criança.. As crianças de hoje não imaginam a felicidade das crianças de antigamente, que adormeciam ouvindo contar histórias de Trancoso, e contos de fadas, onde não havia violência e todos eram felizes para sempre.
    Sua crônica faz bem à alma…Adorei!

    Um grande abraço! Muita Saúde e Paz!

  3. Parabéns Mestre contador de istorias. Suas crônicas são como sempre pura poesia
    em prosa. Gosto demais de ler e ouvir falar com sotaque do puro sertão,
    assim fica tudim mais verdadeiro e sem modernismos indesejados.
    Hoje em dia , infelismente nenhuma criança se lembra de um dia ter ouvido o
    barulho do chocalho preso no pescoço do bode no chiqueiro, o latido de advertência do cão caseiro avisando ” qui temos visita ” ou também ouvir
    algumas istórias fantásticas vindo da mente bondosa de um velho contador.
    Tudo hoje, tudim está na palma da mão. Naquela estrovenga chamado de celular
    em que passam horas cutucando e jamais se lembram ou percebem que há
    vida que merece ser vivida e apreciada, que existem árvores, pessoas e animais ao nosso redor e que
    tudo merece a nossa atenção.
    Suas estórias são relatos de vida, da vida que tínhamos no passado e que jamais
    voltará, infelismente.

    • d.matt a vida nos ensina a ouvir e a contar o que de bom tivemos um dia. Infelizmente, temos que pagar o ônus pelas mudanças que nem sempre são para melhor.

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