PALAVRA MALDITA
Este ano de 2019, que está acabando vai deixar uma palavra maldita – particularmente, eu prefiro “safada” mesmo -. Narrativa. Isso mesmo, a palavra narrativa tomou conta de todos os debates: seja político, social, antropológico, filosófico. Não se vive mais, não se constrói mais histórias, não se vive e se analisa fatos. Apenas criam-se narrativas.
O problema das ditas “narrativas” para se referir a fatos, a acontecimentos, a história, é que ela é uma palavra moldável. A narrativa sempre vai se ajustar ao gosto e às tendências – sejam elas morais, amorais, ou imorais – do narrador. Um fato nunca será o que ele é. Um acontecimento nunca se dará de uma forma. Sempre será filtrado pela dita narrativa.
Werner Heisenberg, na década de 1920 criou o famoso Princípio da Incerteza. Despretensioso, como todo princípio lógico, era uma tentativa de explicar um fenômeno físico. Mesmo Heisenberg não anteviu as implicações históricas, sociais, culturais, políticas e comportamentais que sua teoria traria para o mundo. Basicamente Hisenberg postulou que o mundo da Física era regido por uma incerteza probabilística, ou seja, quando um cientista fosse medir posição e velocidade de uma partícula, o máximo que ele poderia conseguir era uma probabilidade sobre elas, nunca um valor absoluto. A partir desse postulado, suas implicações no mudo foram imensas. Em um acidente de trânsito, só o fato de eu estar presenciando esse fato, ele já modificou. Ou seja, meu testemunho será diferente do de outro que presenciou o mesmo acidente. E se tivermos cem testemunhos, teremos cem visões diferentes do fato, mas todos eles descreverão o mesmo fato.
Nas ditas narrativas, e aqui mora o perigo, a descrição não é dada em cima do fato, mas sim sobre o que o narrador quer destacar do fato, ou o que a testemunha quer salientar do fato, de modo que a narrativa se torna mais importante do que o fato em si. Tenho certeza que, se Heisenberg fosse vivo hoje, ele açoitaria esses narradores de porta de boteco com dois metros de fumo de corda, aqueles de Arapiraca, com três trançados.
A narrativa, tão bem utilizada por políticos, pela imprensa que está cada vez mais preguiçosa – a preguiça é tanta que deixaram de buscar a informação e se preocupam em escolher a melhor narrativa que se ajusta a seus conceitos e pré-conceitos para depois divulgá-las como fato – contamina o debate. Isto porque a narrativa é um caminho de mão única. Veda o debate, fecha a porta para o contraditório, tem medo da negativa. A narrativa – palavra xexelenta (aqui no MS xexelento é sinônimo de nojento, de desprezível) aplicada no contexto social, político, ideológico é coisa de gente safada mesmo, pois não DIAloga, mas MONOloga diante de um ajuntamento de curibocas que ficam com a boca aberta cheia de mosquitinhos, enquanto são empanturrados com essa bobagem.
É bom ficar com os dois olhos bem abertos – Camões que tinha um só não caiu nessa besteira do seu tempo. Mesmo náufrago, salvou Os Lusíadas nadando com um braço só e não se deixou contaminar pelas narrativas sobre o Novo Mundo – porque a dita narrativa é igual à esperteza…. se a alimentarmos além da conta, um dia ela acaba “jantando” a gente.