MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

No século 19, o dinheiro era o ouro. Cada país tinha suas moedas, mas elas eram apenas uma conveniência, para que ninguém precisasse usar balanças para pagar ou receber. Como cada moeda era equivalente a uma quantidade fixa de ouro, não havia “cotações de câmbio” e o comércio entre países era muito mais fácil do que é hoje.

Na Primeira Guerra Mundial, os países da Europa repetiram uma idéia que já havia sido usada por muitos países quando o governo ficava sem dinheiro: acabar com a equivalência em ouro e fabricar dinheiro de papel. Isso levou países como a Alemanha à hiperinflação. Quando os Estados Unidos cometeram o mesmo erro nos anos 20, criaram a “Grande Depressão”, que afetou o comércio e a economia do mundo todo, e pode ser considerada uma das causas da Segunda Guerra Mundial.

Em 1944, antes mesmo da guerra acabar, todos perceberam que seria necessário reconstruir o sistema financeiro mundial. Após algumas negociações prévias, representantes de 44 países se reuniram em um hotel de luxo nos EUA e firmaram um acordo que ficou conhecido pelo nome da cidade onde aconteceu, Bretton Woods.

Todos sabiam que para criar um sistema sólido, era preciso voltar ao ouro. O problema é que os países da Europa haviam usado suas reservas para pagar as despesas da guerra, e em 1944 os EUA eram donos de dois terços de todo o ouro do mundo. Criou-se então um sistema em que o dólar seria fixado em ouro (35 dólares por onça, ou 0,888 gramas por dólar), e os demais países manteriam suas moedas em uma cotação fixa em relação ao dólar. Os EUA se comprometiam a trocar dólares por ouro se algum país pedisse.

Com a enorme demanda gerada pela reconstrução da Europa, com os EUA fornecendo crédito aos demais países, e com a estabilidade trazida pelo câmbio fixo, os anos do pós-guerra foram de enorme crescimento da economia. A Europa se esforçava para retornar aos níveis pré-guerra, e os EUA, que saíram da guerra ilesos, experimentavam um boom econômico sem precedentes.

Em 1963 o presidente John Kennedy, aproveitando o momento favorável, propôs uma lei reduzindo impostos. Antes da lei ser aprovada pelo congresso, porém, Kennedy foi morto em Dallas e seu vice, Lyndon Johnson, assumiu a presidência. O otimismo gerado pela redução de impostos já estava mostrando resultados, e o PIB do país mostraria um crescimento de 10% no ano de 1964. Esse otimismo também permitiu a Johnson se reeleger com larga margem de votos e com uma confortável maioria no congresso.

Poucas coisas são tão ruins para um país como um presidente popular em um período de vacas gordas, especialmente se sua popularidade incluir a imprensa. Animado com as boas notícias e com poder para aprovar qualquer coisa que quisesse, Johnson inventou um programa que ficou conhecido como “Great Society”. Na metade de 1964, foram criados 14 grupos de trabalho incumbidos de propor programas para “melhorar” todos os aspectos importantes do país. Os grupos, compostos de acadêmicos, “especialistas” e altos funcionários do governo, foram nomeados pelo presidente e por dois assessores, e trabalharam em segredo para “evitar perda de tempo com polêmicas”. Como se pode notar, quando um governo se sente forte, a primeira coisa que faz é jogar pela janela as idéias de “democracia”.

Para explicar o que foi o tal plano, vou usar trechos de uma publicação da época (1965):

“Os planos para as cidades americanas do futuro exigirão que a remodelação urbana seja subvencionada em escala crescente.”

“Os programas de trânsito serão subvencionados na Grande Sociedade.”

“Inúmeros bilhões de dólares poderão ser gastos proveitosamente, segundo os planejadores, na remodelação das cidades.”

“Com o planejamento as cidades poderão tornar-se lugares onde um número cada vez maior de habitantes poderá viver com segurança e satisfação.”

“Terá de haver mais dinheiro para parques em torno das cidades. Os parques nacionais terão de ser ampliados.”

“O congresso aprovou uma lei que destina verbas federais para se juntarem à verbas estaduais e municipais no combate à poluição e à fumaça.”

“O Presidente tem idéias bem assentadas sobre a educação. Uma delas é o aumento da ajuda federal em escala muito maior.”

“O plano compreende o aumento das verbas federais para preparação de professores e construção de escolas.”

“Um programa de assistência hospitalar aos aposentados, mantido pelos impostos, será um dos primeiros a ser criado.”

“O congresso aprovou um programa de bolsas para estudantes de enfermagem e de subvenções para escolas de enfermagem.”

“Serão ampliados os programas do governo para estabilizar o preço dos produtos agrícolas e a renda dos agricultores.”

“Haverá distribuição de excedentes de comida aos necessitados.”

“A tendência dos programas agrícolas será a de pagamento direto aos agricultores.”

São quatro páginas de promessas maravilhosas. Talvez alguns leitores, no meio de tantas maravilhas, se pergunte “e quem paga?” No fim do artigo, um solitário parágrafo diz o seguinte:

“Uma estrutura de programas-piloto está em cogitação e pode ser efetuada com uma despesa que talvez não assuste os eleitores. Depois, no caso de um retardamento na economia privada, será posta em funcionamento a máquina por meio da qual poderá ocorrer um grande e rápido dispêndio de fundos.”

À parte a deliciosa ironia do “talvez não assuste os eleitores”, fica bem claro que a resposta para tantos subsídios, verbas e subvenções é a velha e conhecida máquina de imprimir dinheiro, e foi exatamente isso que aconteceu.

Um dos truques preferidos dos políticos é criar programas onde os benefícios aparecem a curto prazo e os malefícios, a longo prazo. Os fãs de político adoram criar narrativas supostamente imparciais onde os períodos analisados são cuidadosamente escolhidos para incluir os dados bons e deixar de fora os dados ruins. A “Grande Sociedade” não é exceção. Em seus dois primeiros anos, 1965 e 1966, os efeitos benéficos da redução de impostos efetuada por Kennedy mantiveram a economia em alta. À medida em que os planos iam sendo implementados, as despesas iam crescendo e o governo se enchia de novos departamentos e novos funcionários, a máquina de fazer dinheiro funcionava cada vez mais para pagar a conta. Não demorou para a inflação começar a dar o ar de sua graça.

Os demais países perceberam que os EUA não estavam mais levando a sério o compromisso de manter o dólar ancorado em ouro, e sabiam as consequências disso. Em 1968, vários países começaram a trocar suas reservas em dólar por reservas em ouro, pelo valor combinado em 1944. Com os programas criados por Johnson gastando dinheiro a todo vapor e a despesa da guerra do Vietnã aumentando, a fabricação de dinheiro aumentava sem parar. Em 1970, as reservas de ouro dos EUA cobriam apenas 22% do total de dólares existentes. Em maio de 1971 a Alemanha abandonou o acordo de Bretton Woods. Em julho, a Suíça solicitou a troca de 50 milhões de dólares por ouro, e a França, 190 milhões. O governo dos EUA percebeu que aquela situação esgotaria as reservas de ouro do país em pouco tempo.

Em agosto de 1971 o presidente Richard Nixon anunciou que os EUA não fariam mais trocas de dólares por ouro, o que significava que o preço do ouro passaria a ser determinado pelo mercado. Adicionalmente, no melhor estilo terceiro mundo, foi anunciado um congelamento de preços (para “conter a inflação”) e um aumento dos impostos de importação (para “proteger a indústria e o comércio nacionais”).

Alguns números para mostrar os resultados: o desemprego saltou de 3,5% em 1969 para 6% em 1971-1972 e atingiu 9% em 1975. O preço do ouro, que permaneceu fixo em $35 durante vinte anos, saltou para $200 em 1975, e ultrapassou os $500 nos anos 80. A taxa de juros, que havia chegado a 1% nos anos 50, pulou para 9% em 1969 e 13% em 1975. O índice de preços que permaneceu abaixo dos 3% até 1965 subiu para 6% em 1970 e 12% em 1975.

E no resto do mundo? Com o dólar transformado em moeda de papel, os demais países se sentiram livres para fazer o mesmo, com a destacada exceção da Suíça. O dinheiro de verdade, aquele que não perde seu valor e é reconhecido no mundo inteiro, virou história. Foi substituído por pedaços de papel colorido que perdem valor dia a dia, e que, a rigor, não valem nada e precisam de uma lei para obrigar as pessoas a usá-los.

3 pensou em “QUANDO O DINHEIRO DE VERDADE DEIXOU DE EXISTIR

    • Grato pelo comentário, José. Sou leitor assíduo do Mises há muito tempo, mas acho que esse artigo tem um pouco de desespero. Aquela coisa de estar numa situação feia e falar bem alto que está tudo bem para ver se alguém acredita.

      Concordo que não veremos mudanças drásticas em pouco tempo, mesmo porque a China pensa a longo prazo enquanto os EUA estão cada vez mais sem rumo e pensando apenas no hoje. Mas as mudanças virão.

      O próprio autor do artigo admite isso no final: “Washington é viciado em gastos deficitários, inflação monetária e intromissão internacional em nome da primazia e da guerra dos EUA. Não vai parar até que a inflação doméstica se torne politicamente insuportável e os estados estrangeiros terminem de construir rampas de saída do sistema do dólar.”

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