JOSÉ PAULO CAVALCANTI - PENSO, LOGO INSISTO

Fernando Pessoa começa poema (O marinheiro) dizendo “Falar no passado ‒ isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena…”. Seja como for, e mesmo inútil, esse caso do presente das joias me leva a dois momentos de um passado que passou. A eles, pois, recordar é viver.

1. A Câmara dos Deputados decidiu providenciar um novo Regimento Interno. E o secretário da mesa diretora, deputado Waldir Pires ‒ depois seria ministro da Previdência no governo Sarney e governador da Bahia (1987/1989) ‒ pediu que redigisse minuta para ser votada. Em razão só de nossa amizade. Sem nenhuma remuneração pelo trabalho, não custa lembrar. Fiz isso a partir de regimentos entre si muito semelhantes, nos países do Primeiro Mundo. Sem inventar novidades. Apenas escolhendo as melhores regras, nas boas democracias. Sobretudo em relação à moralidade no exercício da função pública. Inclusive proibindo que parlamentares pudessem ter emissoras de rádio e televisão. Já é assim, na Constituição; só que no mundo real, por interpretação muito discutível do próprio Congresso Nacional, acabaram esses parlamentares apenas sem poder ocupar cargos de direção nas empresas. E quem quiser saber quantas estações foram deferidas a parlamentares, pelos governos (de direita ou de esquerda, civis ou militares, tanto faz), vai se assustar. Ali vale a Regra de São Francisco, é dando que se recebe.

Outra providência foi também vedar que parlamentares (como empresas controladas por eles ou familiares) pudessem firmar contratos com o governo. Especialmente tomando grana em bancos públicos. Outra farra. Até perceber, nas conversas tidas, que Deputados estavam querendo outra coisa, um Regimento de Etiquetas. Não pode falar alto, dizer palavrões, distratar colegas, por aí. Foi o que disse ao dep. Waldir Pires. E completei indicando que, se assim fosse, bastaria cortar os 18 primeiros artigos e começar o Regimento pelo art. 19. Respondeu que iria votar como entreguei. Até hoje. Palavras ao vento.

Ocorre que um dos artigos que redigi era, precisamente, o dos presentes. E o que vale (valia, naquele tempo, não deve ter mudado), nos países democráticos, é não poder exceder 10%, no valor, dos salários dos Deputados. O mesmo com almoços, jantares, viagens, lembranças. Exceção apenas com presentes de natureza claramente pessoal, como um quadro retratando o deputado. Mas, mesmo assim, apenas quando não houvesse interesse, de quem oferece o presente, em nenhum projeto que estivesse em votação na Câmara. Era (é) uma boa regra. E deveria valer não só para Deputados Federais. Além deles também para Vereadores, Deputados Estaduais, Prefeitos, Governadores, Senadores, Ministros e, sobretudo, Presidentes da República.

2. Agora o outro caso. Chegam, na minha sala, dois velhinhos. O caso era simples. Adotaram uma criança de meses, nascida em Portugal. E este filho, já homem feito, agora os sustentava. Mas cometeu dois pequenos delitos (já nem lembro quais). Foi então definido, em interpretação fria dos regulamentares, que deveria ser deportado. O desespero dos dois decorria do fato de que o rapaz estava sendo devolvido à terra natal, onde não conhecia ninguém. Quando sua vida estava já estruturada por aqui. Até empresas tinha. E, sem seu filho perto, como sobreviveriam esses velhos? Pedi que o caso fosse reestudado com atenção; e a recomendação que depois recebi, no ministério, foi que melhor seria não extraditar. Devendo por aqui mesmo cumprir pena. E permanecer no Brasil, depois. Aceitei a decisão (com alívio) e disse aos velhos, que logo comunicaram essa boa nova ao filho.

Por conta de algum problema nas comunicações, essa decisão não chegou à Polícia Federal. E no avião da TAP estavam já o extraditado, algemado, tendo ao lado um policial federal que o acompanharia para que fosse entregue às autoridades portuguesas. Só que o jovem, surpresa para todos, subiu na poltrona e começou discurso dirigido aos outros passageiros: “Absurdo, a extradição foi revogada e a polícia não quer respeitar a decisão”, por aí. Resultado, o avião todo ficou ao lado do rapaz, exigindo que a Polícia Federal confirmasse aquilo que havia dito. Verificado o erro, permaneceu mesmo no Brasil.

Dias depois, os velhos foram de novo à minha sala. Para agradecer. A mulher havia bordado, ela própria, uma toalha de mesa. Era presente. Renda fina. Foi a forma deles de dizer obrigado. E tomei uma decisão lamentável. Respondi que não poderia receber, pois o valor excedia os 10% de meu salário (ainda tinha na memória aquele Regimento da Câmara dos Deputados que redigi). E o olhar de frustração, ou lamento, ou só tristeza enorme da velha dói em mim, até hoje, como flecha. Pudesse voltar o passado e, perdão, teria aceito o presente. Claro. Mesmo que, depois, entregasse ao ministério para por em alguma mesa de lá. E seguiu a vida. E cada qual no seu caminho. E não eram joias. E era só uma toalha. E nem era tão cara.

6 pensou em “PRESENTES…

  1. Sou dos que entendem que a diferença maior entre uma toalha artesanalmente bordada e uma jóia de altíssimo valor não se mede pela pecúnia envolvida, mas pelo caráter de quem recebe o presente. Os do bem recusam o mimo, por dever funcional e obediência aos rigores morais; os demais não apenas aceitam como o incorporam ao patrimônio pessoal – para depois negar, com o maior descaramento. Não esperaria do amigo Acadêmico outra atitude que não a adotada na situação descrita: seu reto proceder não permitiria outro gesto.

  2. Prezado mestre Zé Paulo,

    Mesmo tendo em mente a minha imensa ignorância, bem como a sua imensa sapiência sobre o assunto, ouso dizer que o senhor, a meu ver, deu uma grande pisada na bola. Pobre dessa velhinha.

    Apesar de também ter me recusado terminantemente a receber qualquer agrado de terceiros, quando em posições de poder, esta toalhinha eu receberia. Era um mimo de cunho altamente pessoal e de valor simbólico. Alem de que não havia mais decisão nenhuma a ser tomada ou providência a ser adotada. Era tudo Ex Post Facto. Não tinha mais nenhuma influência no caso. Não poderia ser caracterizado como suborno.

    É… Cada cabeça uma sentença.

    Estive em uma função em que os fornecedores descobriram que eu gostava muito de vinho, Foi um festival de garrafas chegando para mim no natal. Não tive dúvidas: Mandei colocá-las todas num armário no meio da sala, à medida que iam chegando. No último dia de trabalho antes do feriado, fizemos um sorteio com toda a equipe. Foi uma farra. ahahahah
    (Claro que meu nome constava do sorteio. Também sou filho de Deus)

    • Caro Adonis, supondo que o Sr. J. Paulo recebesse a moeda de hoje, cerca de 30 mil reais em sua função pública.

      A toalha bordada deveria valer mais de 3 mil para ser recusada valendo a regra auto imposta pelo então funcionário público.

      Aí fica uma questão, quanto valia a toalha? Para a Sra. que o fez, não tinha preço, pois o carinho, o amor que foi depositado em cada ponto era imenso, dada a graça que recebeu.

      Mas o Sr. J. Paulo colocou valor e recusou o suor da Velhinha e sua gratidão, pois a seu ver a toalha valia mais de 3 mil reais e sua regra não o permitia receber este regalo.

      É, cada cabeça uma sentença.

  3. Os princípios morais paternos pesaram mais no inconsciente do Dr. J. Paulo.

    Louvo o Grande Homem por tal atitude.

    Existem casos e casos. O caso de Adônis pode ser uma exceção.

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