MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Antigamente, no tempo dos neandertais, todo mundo era pobre. Ninguém tinha carro, smartphone ou casa própria (no máximo, uma caverna). Mas o homo sapiens aprendeu que unindo trabalho e inteligência, é possível produzir coisas, e que estas coisas melhoram a vida, e que por isso são chamadas coletivamente de “riqueza”.

Mas olhando o presente, não é difícil perceber que alguns lugares são mais ricos e outros são mais pobres. Especificamente, nós brasileiros somos mais pobres do que os moradores de vários países. Por quê?

1. PORQUE SOMOS BURROS

Essa não precisa explicar muito, é só olhar nossos números em qualquer ranking internacional. Acontece que nossa cultura (herança ibérica) enxerga os diplomas como um equivalente moderno dos antigos títulos de nobreza, e os acadêmicos e bacharéis são valorizados não pelo que sabem, mas pela quantidade de títulos e diplomas que ostentam. A missão de nosso sistema educacional não é produzir ou transmitir conhecimento, mas separar nobres dos plebeus, ou seja, definir quem pertence à classe que só tem privilégios e quem pertence à classe que só tem obrigações.

O resultado é óbvio: sem estudar português, somos deficientes em escrever e interpretar textos, o que dificulta a transmissão do conhecimento. Sem estudar matemática, não sabemos usar raciocínio lógico para resolver problemas e não sabemos avaliar idéias e propostas de forma objetivamente (o tal do “povo cordial”, que pensa com o coração e não com o cérebro). Sem estudar história, não entendemos o mundo em que vivemos e continuamos a acreditar em utopias e repetir erros que já foram cometidos muitas vezes. Sem estudar ciências, não sabemos produzir coisas, o que nos torna meros consumidores daquilos que povos mais inteligentes produzem.

2. PORQUE NÃO TEMOS CAPITAL

Bens de capital são coisas que facilitam nosso trabalho e aumentam a produtividade. Quem tem um trator produz mais alimentos do que quem só tem uma enxada. Quem tem uma máquina de costura produz mais roupas do que alguém que costura à mão. E assim por diante.

Um exemplo prático: uma pessoa que mora em um país rico chama alguém para consertar um vazamento ou uma porta emperrada. O profissional chegará de botas, capacete, e com tantas ferramentas penduradas no cinto que parece uma árvore de natal. Graças a estas ferramentas (e ao seu conhecimento) ele fará o serviço de forma rápida e bem-feita. Na mesma situação no Brasil, o “profissional” (aspas obrigatórias) chegará de camiseta e havaiana, trazendo uma chave de fenda espanada e um martelo com o cabo frouxo. E, portanto, o serviço vai demorar mais e talvez não fique bom.

Porque não temos capital? De certa forma, é um círculo vicioso: a pessoa produz pouco porque não pode comprar ferramentas, e não pode comprar ferramentas porque produz pouco. Mas há um elemento externo nesse círculo: de tudo que a pessoa ganha, o governo fica com uma parte, e na hora de comprar a ferramenta, a pessoa tem que pagar uma ferramenta para ele e outra para o governo. Aí fica difícil. (A tarifa média de importação no Brasil é a maior da América Latina, dados do Banco Mundial. Em todo o mundo, ficamos atrás apenas de Camarões, Etiópia e Chade, pelo critério da média simples/não-ponderada. Já falei sobre as consequências do protecionismo: não podemos comprar produtos bons, e os fabricantes locais não precisam se esforçar nem reduzir preços, já que não têm concorrência.)

3. PORQUE MUITO DAQUILO QUE PRODUZIMOS É DESPERDIÇADO

Em lugares pobres, as coisas são feitas sem planejamento. Muitas vezes, de improviso. Quase sempre atendendo a alguma necessidade específica e urgente ou a algum interesse pessoal. Claro que o resultado é desperdício.

Em países de “primeiro mundo” a pavimentação das rodovias é projetada para durar cinquenta anos. Aqui, ano após ano joga-se asfalto sobre uma base inadequada apenas para vê-lo ir embora na primeira chuva. Países ricos planejam a longo prazo, países pobres como nós empilham um “quebra-galho” em cima de outro. Se é necessário fazer uma obra de cem milhões, corta-se vinte porque o orçamento sempre está curto. O resultado são oitenta milhões jogados fora, porque o problema continua, e logo em seguida começa-se a planejar gastar mais cinquenta para remendar a obra inadequada onde economizaram vinte.

Vou contar uma historinha que ouvi de um fornecedor de minha ex-empresa. Ele estava em outro cliente, onde a equipe de manutenção estava sofrendo para trocar uma peça de difícil acesso em uma máquina de um milhão de dólares. Na hora de remontar a peça, ao invés de recolocar os cinco parafusos, colocaram só quatro. Esse meu conhecido estava observando junto com um funcionário de outro setor, que estava indignado: “bando de incompetentes! Se os alemães colocaram cinco parafusos, é porque precisa de cinco parafusos!”. Mas como não era assunto do setor dele, não podia fazer nada. Trocada a peça, colocaram a máquina para funcionar. Duas horas depois, a peça recém-trocada quebra e danifica várias outras. Máquina parada por dois dias, dez mil reais em peças, perda de faturamento estimada em mais de cem mil reais, fora a insatisfação dos clientes com os pedidos atrasados. Por um parafuso que “dava muito trabalho” para recolocar.

4. PORQUE ENQUANTO OS OUTROS ESTÃO TRABALHANDO NÓS ESTAMOS PARADOS NA FILA

Isso é algo que me intriga desde meus dezoito anos, quando abri minha primeira conta no banco. A quantidade de pessoas que passam horas e mais horas sem produzir nada porque estão paradas em uma fila é um incrediente importante da nossa pobreza. O tempo não é infinito. Cada hora que uma pessoa perdeu em uma fila é uma hora improdutiva que jamais será recuperada. Pior ainda é pensar que boa parte destas filas é inútil, serve apenas para cumprir uma obrigação completamente dispensável que alguém (geralmente o governo) inventou. Pelo que me lembro, meu recorde pessoal aconteceu a muitos anos atrás, para conseguir uma segunda via de um documento no detran: foram nove filas e três horas e meia de espera para conseguir um papelzinho que a rigor nem precisaria existir.

Enquanto em outros países as pessoas usam seu tempo para produzir riqueza, nós usamos nosso tempo para cumprir rituais que não sabemos por que ou para que existem. Enquanto eles estão construindo máquinas, fazendo projetos, pesquisando tecnologias, nós estamos preocupados em “pagar uma guia”, “pegar um carimbo”, “pedir um alvará”, “dar entrada num requerimento”, “conseguir autorização”, “reconhecer firma”, “tirar certidão”, “protocolar a solicitação” e “anexar cópia autenticada do rg, cpf e comprovante de endereço”.

5. PORQUE QUANDO ALGUÉM DIZ ONDE ERRAMOS, AO INVÉS DE PARAR DE ERRAR PREFERIMOS FICAR OFENDIDOS COM QUEM DISSE

6 pensou em “POR QUE SOMOS POBRES?

  1. Mais um excelente texto, Marcelo, com excelentes reflexões.
    Para não ficar só nos elogios, acho que faltou algum trecho do item 5.
    E, quanto ao item 1, tenho dificuldade de assimilação dessa parte:
    “A missão de nosso sistema educacional não é produzir ou transmitir conhecimento, mas separar nobres dos plebeus, ou seja, definir quem pertence à classe que só tem privilégios e quem pertence à classe que só tem obrigações.”.
    Mas é só porque não absorvo bem essa noção de “classe”. Especialmente quando é para dizer que uma classe é privilegiada e outra é explorada.
    Vejo mais os indivíduos, e, quanto muito, os grupos de interesse. Assim, quando se fala, por exemplo, em classe dos trabalhadores, vejo que entre os trabalhadores há os autônomos e os empregados, os braçais e os intelectuais, os do setor público e os do setor privado, cada um desses grupos com peculiaridades, cabendo outros subgrupos dentro deles, além de haver trabalhadores que estão em mais de um grupo ao mesmo tempo.
    Se falarmos em classe dos patrões, ou dos donos do meio de produção, a variedade também é grande.
    Por isso, não acredito em classe de quem só tem privilégios, nem em classe de quem só tem obrigações.
    Mas, é uma posição muito pessoal minha, para a qual nunca busquei fundamento teórico, o que significa que tenho grandes chances de estar absolutamente equivocado.
    A par dessa pequena divergência, sou grato pela leitura prazerosa e instrutiva que você me proporcionou.

  2. Escreves: Cada hora que uma pessoa perdeu em uma fila é uma hora improdutiva que jamais será recuperada.

    Cubanos e venezuelanos passam praticamante o dia inteiro durante o ano inteiro mudando de filas morosas e gigantescas para a aquisição de tudo que necessitam para seu mal viver (????). E argentinos estão na fila para serem os próximos a ter tal privilégio filístico…

    Sco Pa Tu Manaa… Isso me faz recordar a CCCP e a RDA. Dizem alguns que o comunismo acabou…

    • Os alemães da antiga RDA nunca saíam de casa sem uma sacola, e quando viam uma fila, entravam nela sem perguntar para quê era a fila. Se havia fila, é porquê havia ALGUMA COISA para comprar.

      • Estou triste com a situação da Argentina, pois possuo vários amigos em Mendoza da época em que Sancho praticava montanhismo com os hermanos.

        Me informam eles que piora a cada dia a sensação de piora na qualidade (?????) de vida

  3. Marcos, confesso que o ítem 5 foi só uma tentativa (aparentemente mal-sucedida) de auto-ironia, talvez pela minha origem curitibana (curitibano odeia que falem mal de Curitiba, e alguns defeitos se perpetuam por causa disso).

    Quanto à questão das classes, ou grupos: nossa sociedade, espelhada na sociedade portuguesa de séculos atrás, estranha a idéia de “igualdade”. Para a maioria, é absolutamente natural que existam diferentes classes sociais, algumas com mais direitos, outras com menos. Na sociedade antiga, as classes superiores eram a nobreza e o alto clero. Após a revolução industrial, os grandes empresários também começaram a participar, embora aceitos com bastante má-vontade (vide Mauá no século 19 e Matarazzo no século 20).

    Claro que “uma classe só tem privilégios, outra só tem deveres” é uma hipérbole. O que eu quis dizer foi que o equivalente moderno da nobreza e do alto clero são as vagas reservadas aos diplomados e “intelectuais” membros das panelinhas.

    Exemplo: originalmente, a profissão de farmacêutico era relacionada com produzir remédios. Podiam trabalhar como autônomos ou em indústrias. Hoje, farmacêutico é um balconista de luxo que as farmácias são obrigadas a contratar, e pagar o salário que o conselho de classe exige (afinal, eles têm “curso superior”). O coitado sem curso superior trabalha de balconista igualzinho, mas ganha menos porque não tem um CRF para chamar de seu.

    Outro: conheço um sujeito que trabalha com caldeiras faz cinquenta e cinco anos. Ele entende tudo de caldeiras. É dono de uma pequena empresa que fabrica e faz manutenção. Mas como ele nunca pôde cursar uma faculdade, para cada serviço que ele faz ele precisa pagar um engenheiro (que não entende nada de caldeiras) para assinar a ART, senão o CREA fecha a empresa dele. Têm um monte de engenheiro que vive só de assinar pelo serviço dos outros. É a versão moderna dos privilégios e “favores reais” que os nobres tinham na Idade Média.

    Meus conhecidos que trabalham no setor público contam que é comum ver setores com quatro ou cinco funcionários de “nível médio” que fazem todo o serviço, chefiados por um funcionário de “nível superior” que não faz absolutamente nada e ganha o dobro do que aqueles que fazem, simplesmente porque ele tem um diploma e os outros não.

    Então, finalizando, acho – posição pessoal minha – que nosso sistema educacional é voltado para criar privilégios, e já perdi a conta de quantas vezes me disseram que nas faculdades se ensina e se estuda com mais afinco os privilégios concedidos pelo diploma do que o ofício que ele representa. Espero ter conseguido ser mais claro.

    Grato pela leitura e pela troca de idéias.

Deixe um comentário para Marcelo Bertoluci Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *