A gente aprende na escola que o governo é dividido em três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Também nos ensinam que os tais poderes são “independentes e harmônicos” e que cada um têm uma função específica.
Claro que na prática a gente vê que não é bem assim: o Executivo gosta de legislar e de julgar no lugar do Judiciário; o Judiciário também gosta de legislar e de governar no lugar do Executivo; e o Legislativo gosta de brincar de Judiciário de vez em quando e de ser o Executivo de vez em sempre. Mas em uma coisa eles são bem harmônicos: todos eles querem manter-se no poder.
Um bom exemplo dos mecanismos que o poder usa para se perpetuar pôde ser visto nesta eleição:
Em 2019 nosso Legislativo aprovou uma emenda constitucional criando um novo tipo de emenda parlamentar – “emenda parlamentar” é o eufemismo para verba, dinheiro, grana. Mais especificamente, uma emenda é quando o Legislativo, cuja função deveria ser elaborar leis, se mete no trabalho do Executivo e diz para onde deve ir o dinheiro arrecadado dos nossos impostos. A novidade, identificada pelo código RP6, permite que um parlamentar ordene que uma determinada quantia seja transferida para um estado ou município sem especificar o destino ou finalidade da verba. É quase um “presente” do deputado para o prefeito. No dia-a-dia, o tal RP6 foi apelidado de “emenda pix”. Neste ano, o congresso distribuiu mais de 8 bilhões em emendas pix, a maior parte para municípios pequenos.
O resultado e a idéia por trás de tudo isso ficaram bem claros quando os resultados da eleição foram cruzados com os dados das emendas. Dos cem municípios que mais receberam emendas pix, em 66 deles a “situação” venceu a “oposição”.
Para detalhar mais: em 58 desses 100 municípios, o prefeito concorreu à reeleição, e 54 – mais de 90% – se reelegeram. Entre os demais 42, 12 prefeitos elegeram o sucessor. As três cidades que receberam as maiores verbas nesse método foram:
– Macapá (AP): recebeu 44,9 milhões; o prefeito se reelegeu com 85% dos votos.
– Coari (AM): recebeu 33,6 milhões; foi eleito o primo do atual prefeito.
– Coração de Maria (BA): recebeu 20,3 milhões; o prefeito se reelegeu com 67% dos votos.
Vale notar que as verbas recebidas por Coari e Coração de Maria correspondem a mais de mil reais por eleitor do município.
As emendas parlamentares são, desde o ano passado, o tema de uma acalorada disputa entre o congresso e o STF, mas tudo indica que após intensas negociações, os poderes independentes e harmônicos chegarão a um consenso que seja bom para todos. Para todos eles, naturalmente, não para nós contribuintes.