JESUS DE RITINHA DE MIÚDO

Eu me lembro daquela tarde quente de um fevereiro no calendário perdido no registro do ano. Não da minha mente.

Nós tínhamos acabado de almoçar, e os pratos ainda repousavam sujos sobre a mesa.

Era meu aniversário e nada demais havia sido feito para aquela refeição. Tampouco existia em mim qualquer expectativa de presente. Papai sentado à mesa, na esquina do móvel, limpava uma laranja girando-a contra a faca, sem deixar se romper a casca. Eu balançava os dois cubos de gelo no fundo do copo, numa água levemente avermelhada do restante do suco sem graça de beterrabas.

De repente ele parou, deixou a casca totalmente retirada no prato e olhou para mim.

Do nada começou a me falar. Senti nos seus olhos calmos a necessidade de me repassar algo.

– Nunca deixe de colocar um parafuso no lugar do prego, quando quiser que a madeira fique mais segura.

A minha juventude não me deixou compreender muito bem aquela alegoria. E ele continuou:

– É sempre mais difícil extrair o parafuso.

Na inquietude de todo jovem, que se alia com a curiosidade própria da idade pouca, eu lhe perguntei “por que o senhor está me dizendo isso?”

Metade da laranja estava ocupando a sua fala. Seus olhos me passaram a mensagem “espere! Já, já eu digo”.

Um silêncio mastigado durou alguns segundos, talvez minutos, enquanto as sementes eram jogadas para fora da boca para a mão dele.

Antes de colocar a outra metade da laranja na boca ele piscou os olhos algumas vezes, olhando pela janela da cozinha aberta para o nosso muro.

– Não sei bem. Só não esqueça. O parafuso dá mais trabalho para entrar. Mas segura muito mais.

Disse isso, colocou a outra metade da laranja na boca, se levantou e saiu.

Nunca mais tocamos naquele assunto, ou falamos sobre algo que fizesse aquele conselho ter algum sentido. Nunca mais.

De vez em quando eu lembrava aquela cena, e um parafuso de incompreensão me tomava o raciocínio.

Até ontem eu não tinha a mínima ideia do que deveria pensar sobre a estranha conversa jamais esquecida em seus pormenores.

Hoje cedo estávamos sentados na calçada da mesma casa e eu tenho a idade que ele talvez tivesse à mesa naquele dia; Papai agora é um homem idoso com Alzheimer, sem a compreensão do que eu represento para ele e, se não fosse o tom sério emprestado à sua fala de vez em quando, eu não poderia dizer que a sua consciência é a do pai que me criou.

Assobiava algo alegre e eu olhava para o seu perfil. Tamborilava no braço da cadeira de plástico e eu olhava o seu perfil.

Do nada, como se um fragmento de qualquer tempo tivesse sequestrado a sua consciência por alguns instantes, ele se virou para mim e disse.

– O cabra só se apresenta parecido com quem ele acompanha.

Eu refleti urgente que Papai estava, do seu jeito, querendo me dizer “diga-me com quem andas, que eu te direi quem tu és”.

Mal deu tempo da frase ser completada em minha mente, ele virou o rosto para a frente e terminou:

– Por isso o sujeito só deve se acompanhar com madeira que segure parafuso. A amizade é de verdade e segura.

De onde Papai tirou isso?!

Não sei. Mas, por alguns segundos eu vi ali o emblema moral do meu velho pai.

Sim! Ali estava meu pai. Se ele não tem essa consciência, eu a tenho.

Doravante, Papai, não apenas nas relações de amizade, mas, em tudo buscarei por madeira que segure parafuso.

Semana que vem farei cinquenta e três anos. O presente veio adiantado.

11 pensou em “PARAFUSO

  1. A peroba e dura, pesada e bonita mas só com muita perícia, um marceneiro vai conseguir aplicar-lhe parafusos.
    O jacarandá, então. Esse “se acha”. Raro e valioso. Vive de sua nobreza. Difícil de lidar.
    O cedro, no entanto, é leve, macio e aromático, Recebe prego e parafuso sem maiores esforços. Não lasca nem empena.
    Então, acho que o bicho carpinteiro de seu sábio pai esta se referindo ao cedro. E rosa.

  2. Jesus de Ritinha, seu pai É madeira de lei. Um homem de sabedoria. E com certeza, deu grande exemplo para você e toda sua família. Parabéns pelo texto está muito bem escrito. Abraço grande meu amigo.

  3. Jesus… que memória maravilhosa. Até lembrou meu velho pai e suas filosofanças de um homem de pouca instrução, mas de uma sabedoria gigantesca. Parabéns pelo pai que você tem e pelo pai que se tornou.

  4. Parafuso, me trouxe à mente as alegorias que fazia mestre Saúba dos Bonecos, gênio carpinense (PE), assassinado tragicamente por um psicopata que com ele bebia umas e outras num pega bêbado do bairro Santo Antonio.

    Miúdo, seu pai, mestre Ritinha é a sua inspiração, sua criatividade, seu bem viver.

    Por isso e muito mais a homenagem vale um abraço apertado, bem dentro do peito.

    • Dê uns xêros na cabeça dele por mim, e um abraço apertado, de coração para coração, como no canto gregoriano, Coração, de Dorgival Dantas, que ele chupou, na íntegra, de um canto gregoriano.

  5. Parabéns pelo texto lindíssimo e emocionante, prezado Jesus de Ritinha de Miúdo!
    A sabedoria do seu pai é mais forte do que o desgaste de memória de que ele padece. E esta sabedoria vai permanecer com ele por toda a vida.
    Essa fala sobre o parafuso e o prego foi o maior presente que ele poderia ter lhe dado no dia do seu aniversário, anos atrás. Um presente que ainda hoje você guarda na memória e que seu pai também nunca esqueceu.
    “– Não sei bem. Só não esqueça. O parafuso dá mais trabalho para entrar. Mas segura muito mais.”
    Vejo nas palavras de seu pai uma lição de vida. Uma sábia metáfora.
    Mesmo que ele chegue a não reconhecer você, o importante é que você o reconhece, e sabe lhe dar todo o carinho que ele merece.
    Parabéns, querido poeta, pelo grande filho que você é!
    Grande abraço!

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