Editorial Gazeta do Povo
Evento de lançamento do livro organizado por Rodrigo Pacheco sobre o novo Código Civil
Sem alarde, uma reforma sem precedentes do Código Civil brasileiro está em tramitação no Senado Federal. Trata-se do Projeto de Lei 4/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, ex-presidente da casa. Apresentado por seus defensores como uma mera “modernização” do Código em vigor desde 2003, o texto propõe alterações em 897 artigos e a inclusão de outros 300 dispositivos, modificando de forma radical – e para pior – o atual Código Civil, com propostas que refletem tendências ideológicas pouco consensuais em relação à família, relações contratuais, direito do consumidor, liberdade de expressão e outros temas.
Como já afirmamos em outras ocasiões, não é o momento adequado para uma discussão de tal magnitude – há muitos outros temas mais urgentes que deveriam ocupar a atenção dos senadores – e tampouco há necessidade dessa reforma. Ao contrário do que afirma a justificativa do projeto, o Código Civil continua atual e plenamente apto a lidar com os desafios contemporâneos. E ainda que se entendesse necessária uma reforma – o que não é o caso –, ela jamais poderia ocorrer de maneira apressada ou restrita, como foi o caso do PL 4/2025.
Todas as proposições do projeto têm origem no trabalho de uma comissão de juristas convocada por Pacheco em 2023 para reformar o Código Civil. Enquanto em diversas democracias legisladores dedicam anos de debates com a sociedade civil até alcançar um texto maduro e equilibrado, os juristas indicados por Pacheco elaboraram, em poucos meses e praticamente de forma isolada, uma proposta de novo Código que agora será avaliada pelo Senado.
Entre tantos pontos perigosos, podemos citar, no campo da família, por exemplo, a substituição das expressões “homem e mulher” por “duas pessoas” ao definir casamento e união estável, o que consolidaria na legislação a ideia de que a diferença biológica entre os sexos é irrelevante para a formação da família, o que pode impactar desde políticas públicas até currículos escolares, além de apagar qualquer referência legal à complementaridade entre homem e mulher. O texto quer interferir até na regulação das redes sociais, ao propor a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que garante que as plataformas digitais só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por terceiros caso não cumpram ordem judicial pedindo para removê-los.
Repleto de expressões vagas e indeterminadas, como “todas as suas dimensões”, “aspectos que lhe sejam inerentes” ou “comportamentos e escolhas que as distingam das demais”, o texto é, em muitos trechos, nebuloso, tornando a norma excessivamente sujeita a interpretações ideológicas e voláteis. Qualquer legislação deve primar pela clareza e pela objetividade. No entanto, o projeto caminha na direção oposta, ampliando perigosamente o risco de judicialização e fomentando o ativismo judicial em múltiplas áreas.
Afirma-se, em sua defesa, que o projeto apenas consolida entendimentos jurisprudenciais já existentes. Mas isso é inverter a lógica do Estado de Direito. A jurisprudência resulta da aplicação da lei – não pode substituí-la. Transformar decisões fragmentadas e, muitas vezes, contraditórias em norma positiva é institucionalizar a confusão e transferir ao Judiciário um poder que não lhe pertence. O papel do Legislativo é produzir leis claras e legítimas, sob o crivo democrático, e não endossar soluções casuísticas que comprometem a estabilidade do ordenamento jurídico.
Nesse contexto, causa perplexidade que ainda haja quem defenda o texto. Em abril, por ocasião do lançamento do livro A Reforma do Código Civil: Artigos sobre a atualização da Lei nº 10.406/2002, organizado por Pacheco e reunindo textos dos juristas responsáveis pela proposta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil–AP), elogiou efusivamente o trabalho. “Tenho certeza absoluta de que muito engrandecerá o arcabouço legislativo brasileiro o trabalho feito por Vossa Excelência nesta comissão, ladeado com juristas, com profissionais da Justiça brasileira, para construirmos a modernização do Código de Processo Civil”, afirmou. O evento contou com a presença de ministros do Supremo Tribunal Federal, aliados do governo Lula, presidentes do Senado e da Câmara e representantes da elite jurídica nacional.
Não é hora de refundar o Código Civil. Não houve demanda de advogados, professores ou da sociedade civil nem pressão institucional para uma reforma tão ampla como a pretendida por Pacheco. Não faz qualquer sentido substituir um edifício jurídico sólido por uma colcha de retalhos ideológica como é o texto do novo Código Civil. Essa é uma discussão que não pode prosperar no Congresso, para o bem do Brasil.