JOSÉ DOMINGOS BRITO - MEMORIAL

João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul, RS, em 24/6/1880. Militar da Marinha e líder da “Revolta da Chibata”, em 1910, ficou conhecido como “Almirante Negro”. Filho de ex-escravos, entrou na Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre, em 1895. Ao contrário da maioria dos marinheiros, que eram recrutados à força pela polícia, alistou-se como grumete em 10/12/1895, aos 14 anos, no Rio de Janeiro.

Viajou bastante pelo Brasil e vários países do mundo nos 15 anos que esteve na ativa da Marinha. Boa parte das viagens eram de instrução em navios de guerra. A partir de 1908, alguns marinheiros foram enviados à Inglaterra para acompanhar o final da construção de navios encomendados pelo governo. Lá ficou sabendo do motim feito pelos marinheiros russos, em 1905, numa luta por melhores condições de trabalho. Trata-se da revolta do Encouraçado Potemkin, que virou filme do diretor Sergei Einsenstein em 1925. Era um marinheiro competente, admirado pelos colegas e elogiado pelo comandante, devido ao bom comportamento e por ser um bom timoneiro. Era a pessoa talhada para liderar a “Revolta da Chibata”. O uso da chibata na Marinha foi abolido, por lei, em 1889. Porém o castigo continuou a ser aplicado, a critério dos oficiais, no contingente de 90% de marujos negros e mulatos. O clima de revolta contra esse abuso crescia na tripulação.

Num clima de revolta, os marinheiros, liderados por João Cândido, tiveram audiência com o Governo na presença do Ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, reivindicando o fim dos castigos físicos. Mas nada foi providenciado e os marinheiros decidiram fazer uma sublevação pelo fim do uso da chibata em 25/11/1910. Antes porém, ocorre um fato que precipitou a revolta. 3 dias antes, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não foram interrompidas mesmo após desmaiado, diante de toda a tripulação do navio Minas Gerais. A punição se devia ao fato de o marinheiro ter sido flagrado com uma garrafa de cachaça a bordo.

Á noite do dia 22/11/1910, sabendo que o comandante, João Batista das Neves, dormiria fora do navio, os marinheiros planejaram a tomada de posse das armas, domínio dos oficiais em seus camarotes e o controle do navio, bem como dos demais ancorados na baia da Guanabara. No entanto, o comandante voltou mais cedo do que previsto e surpreendeu os marinheiros no início da revolta. Os ânimos acirrados de ambas as partes resultou no ferimento de um dos marinheiros pelo comandante. Um deles mais exaltado retrucou o ferimento com um tiro na cabeça do comandante e dá-se o combate nos navios Minas Gerais, Bahia e São Paulo com mais 2 oficiais e 3 marinheiros mortos.

João Cândido foi indicado pelos demais líderes como o comandante-em-chefe de toda a esquadra em revolta, composta por 6 navios. Acalmados os ânimos, o “Almirante Negro”, assim chamado pela imprensa, declarou ao Correio da Manhã: “As carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta”. Por 4 dias os navios de guerra Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro apontaram seus canhões para a Capital Federal e mandaram um recado: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira”. A rebelião, envolvendo 2379 homens, terminou com o compromisso do governo em acabar com o uso da chibata e conceder anistia aos revoltosos. A anistia foi aprovada no dia 25 e publicada no Diário Oficial, mas não foi cumprida pelo governo. No dia 28 foi publicado um decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem algum risco para a Marinha.

Pouco depois correu o boato que o Exército iria se vingar da humilhação sofrida pelos marinheiros e deu-se a eclosão de um novo motim entre os fuzileiros navais, na Ilha das Cobras, em 9/12/1910. Não tinha ligação com a Revolta da Chibata, mas lá se encontravam presos muitos marinheiros participantes da revolta. O novo motim foi reprimido com um bombardeio sobre pouco mais de 200 amotinados e serviu de justificativa para o governo implantar a lei marcial. João Cândido chegou a ordenar tiro de canhão sobre os marinheiros-fuzileiros amotinados para provar sua lealdade ao governo. Mas, não adiantou. Com a lei marcial, centenas de marinheiros foram dados como mortos ou desaparecidos e 2000 marinheiros foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre.

Apesar de não ter participado deste 2º levante (se é que houve), João Cândido foi expulso da Marinha e preso em 13/12/1910. Foi encarcerado num cubículo, onde 16 dos 17 companheiros de cela morreram asfixiados. No mês seguinte foi transferido para o Hospital dos Alienados, como louco, mas logo retornou à prisão. Foi solto em 1912, contando com a defesa do rábula Evaristo de Moraes, que atuou de graça. A partir daí passou a viver precariamente, trabalhando como estivador na Praça XV. Em 1930, em meio a efervescência política com o “Estado Novo”, foi preso acusado de subversão, mas logo foi solto. Em 1959 voltou à sua cidade natal para ser homenageado, mas a interferência da Marinha proibiu a cerimônia. No mesmo ano sua memória foi resgatada pelo jornalista Edmar Morel, no livro A Revolta da Chibata. O livro teve 5 edições e praticamente ressuscitou o líder da Revolta que voltou a ser notícia meio século após o acontecimento. Em seguida o velho marinheiro recolheu-se em São João de Meriti, onde levou uma vida pacata, adoeceu e morreu de câncer em 6/12/1969, aos 89 anos. Na década seguinte, os compositores Aldir Blanc e João Bosco prestaram-lhe homenagem com a música “O mestre-sala dos mares”, mas a censura não gostou e seu apelido “Almirante Negro” teve que ser mudado para “Navegante Negro”. Em 1982, o historiador Marcos Antônio da Silva publicou o livro Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910, lançado pela editora Braziliense. Por esta época, a “Revolta da Chibata” ainda era tema de interessa geral, fazendo com que o livro de Edmar Morel fosse reeditado pela quarta vez, em 1986.

Tantas lembranças da Revolta e o heroísmo de seu líder, levaram o historiador e almirante Helio Leoncio Martins a publicar o livro A revolta dos marinheiros 1910, em 1988, que se constituiu na versão oficial da Marinha. O livro foi incluído na “Coleção Brasiliana”, vol. 384, e destaca os problemas gerais de interpretação histórica. Seu relato pretende adotar uma posição neutra quanto ao movimento e refuta o reconhecimento de João Cândido como seu líder maior e como herói. Em 2005, seu nome foi apresentado como projeto de lei nº 5874/05, inscrevendo-o no “Livro dos Heróis da Pátria”. Porém, foi arquivado porque tal homenagem só poderia se dar após 50 anos da morte da pessoa. Este requisito foi adquirido em 2019, mas até agora nenhum projeto de lei foi reapresentado.

Em novembro de 2007, o “Almirante Negro” foi homenageado com uma estátua nos jardins do Museu da República (antigo Palacio do Catete). Na ocasião foi exibido o filme “Memórias da Chibata”, de Marcos Manhães Marins e uma exposição fotográfica. No ano seguinte, na comemoração da “Abolição da Escravatura”, foi publicada a Lei nº 11.756, concedendo anistia “post mortem” ao líder da Revolta e seus companheiros. No entanto, a Lei foi vetada pelo governo na parte em que determinava a reintegração de João Cândido à Marinha. Tal ato imporia à União concessão de aposentadoria e pensão aos seus dependentes, bem como uma possível corrida de outras famílias em busca de reparação financeira. A Lei foi vetada por não apresentar a necessária fonte de custeio. Na realidade, apenas 2 famílias se apresentaram como descendentes destes marinheiros.

Em novembro de 2008, a estátua do “Almirante” foi transferida para a Praça XV de Novembro, no centro do Rio, num evento contando com a presença do presidente Lula, familiares do marinheiro etc. A Marinha não compareceu alegando não poder comemorar, pois prezava a disciplina e a hierarquia. Em 2010 foi dado o nome “João Cândido” ao navio petroleiro da Transpetro, a pedido do presidente da República. A última homenagem que se tem notícia ocorreu em 2018 com a peça Turmalina 18-50: os últimos dias do Almirante Negro em terra, do dramaturgo Vinicius Baião.

5 pensou em “OS BRASILEIROS: João Cândido

  1. João Cândido teve realmente uma história singular. Um marinheiro negro que fez uma revolução real e tomou parte da armada brasileira, fazendo o Governo do então presidente Marechal Hermes ter que negociar. Para a esquerda era um exemplo de líder, apesar de ter cedido às negociações.

    Aí veio a ideia do primeiro governo de esquerda raiz, Lulla deveria homenagear dando um nome de navio ao líder da revolta. A Marinha do brasil não aceitou ter um navio seu com o nome de um ex amotinado. Lulla não encarou esta briga.

    Aí veio a ideia de “jênio”. Vamos construir aqui em brazundunga um petroleiro (o maior navio já produzido nestas terras) disse o cachaceiro de 9 dedos que ocupava a PR (era uma promessa de campanha sua).

    Mas a Coreia do Sul produz navios com mais competência e com preços muito mais baixos que o nosso, diziam à época os brasileiros que pensam no nosso dinheiro. Lulla deu de ombro. Vamos gerar emprego aqui e isso basta. Fizeram uma empresa (a EAS) campeã, um estaleiro no NE em Ipojuca-PE e que mais poderia dar errado?

    Inauguração, Lulla todo orgulhoso, deu o nome do negro João Cândido a um navio que iria transportar petróleo (se fosse Bolsonaro iriam dizer que era racismo). Mas o pior não foi isso, devido a pouquíssima experiência da EAS, o navio além de superfaturado, apresentou problemas mecânicos que não o permitiram sair do estaleiro para singrar os mares.

    Resumo, dois anos depor de muitos remendos, foi comissionado para levar o petróleo da Bacia de Campos para o terminal de S. Sebastião/SP num trajeto de poucos km. João Cândido não deve ter ficado muito feliz. Provavelmente outra revolta ocorreu em seu túmulo.

  2. Mais um exemplo de como governos se reservam o direito de fazer aquilo que proíbem aos outros.

    A escravidão no Brasil havia sido abolida 20 anos antes, para a população; mas para o governo, ela continuava existindo, com chibata e tudo.

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