Dom Frei Paulo Evaristo Arns nasceu em Forquilhinha, S.C., em 14/9 1921. Frade franciscano, cardeal, escritor, jornalista, filósofo, teólogo e arcebispo-emérito de São Paulo, ficou conhecido pela coragem na luta por justiça social, direitos humanos e reestabelecimento da democracia no País na década 1970 em diante. Descendente de uma família de imigrantes alemães com 12 irmãos, incluindo: 1 frade, 2 irmãs freiras e Zilda Arns, médica e coordenadora internacional da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa.
Ingressou na Ordem Franciscana, em 1939, e ordenou-se presbítero em 1945, em Petrópolis. Durante o noviciado cursou a Faculdade de Filosofia de Curitiba e Faculdade de Teologia de Petrópolis. Aí também lecionou no Instituto Teológico Franciscano e na Universidade Católica. Visando se aprimorar no magistério, foi estudar filosofia na Universidade de Sorbonne, em Paris, onde concluiu o doutorado com a tese “A técnica do livro em São Jerônimo”, em 1952. De volta ao Brasil, lecionou em cidades do interior de São Paulo e retornou à Petrópolis, onde passou uns 10 anos lecionando na faculdade onde estudara e ajudando na redação da revista “Vozes”. Foi nomeado bispo pelo Papa Paulo VI, em 1966, e indicado para auxiliar o cardeal Dom Agnelo Rossi na Arquidiocese de São Paulo. Passou 4 anos como vigário episcopal integrando padres, religiosos e leigos; criou a Missão do Povo de Deus; multiplicou os ensinos do Concilio Ecumênico Vaticano II e estimulou a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Na condição de bispo auxiliar, foi designado membro do secretariado do Vaticano para os não-crentes, em 1968, e foi eleito secretário nacional de educação da CNBB-Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em seguida substituiu Dom Agnelo Rossi no cargo de arcebispo metropolitano de São Paulo, em 1970.
No auge do período da ditadura brasileira, a política foi marcada pela luta armada entre os grupos de oposição e o governo, com torturas e abusos políticos. Já em 1969, apoiou ou os frades dominicanos presos sob a acusação de envolvimento com o guerrilheiro Carlos Mariguela. No ano seguinte, diante das torturas ao padre Giulio Vicini e a assistente social Iara Spadini, exigiu dos militares que ambos fossem examinados por médicos. O comandante do II Exército negou o pedido, fazendo-o a recorrer ao governador Abreu Sodré, que também recusou. As relações do clero com os militares começou a azedar de vez com a prisão de dom Aloísio Lorscheider, em outubro de 1970, pelo DOPS. Foram 4 horas de interrogatório, tempo suficiente para mobilizar o alto clero, com envio de carta ao presidente Médici, lamentando a “deterioração dos vínculos, e também ao Papa Paulo VI. A imprensa do Vaticano noticiou o fato e causou impacto internacional. Foi quando se criou a “Comissão Bipartite”, fórum de discussão reservado, que funcionou até 1974, afim de acertar as arestas entre a Igreja e o Estado.
Em seguida foi proibido de visitar presos políticos numa greve de fome, no dia de Pentecostes em 1971, e fez afixar em centenas de igrejas uma carta na qual lamentava que “Neste país cristão, quando estão em jogo vidas humanas, aquele que de Deus recebeu o múnus de pastor seja impedido de cumprir sua missão específica, aliás garantida por nossa Carta Magna”. Em 1972, esteve à frente do lançamento do documento “Testemunho de Paz”, denunciando os sequestros e torturas nas prisões. O documento teve sua divulgação proibida e foi intimado pelo Estado-Maior do Exército. Ouviu do general Antônio Carlos Muricy que o documento fazia acusação grave e que ele poderia ser processado por isso. Sua resposta foi: “aceito o processo, contanto que seja público e que sejam dadas garantias às testemunhas que, nos hospitais e outros lugares, acompanharam pessoas que foram torturadas e morreram”. Em 1972, criou a Comissão Brasileira de Justiça e Paz para denunciar os abusos do regime militar. Nessa época, peregrinava pelos quartéis, usando sua influência para libertar dezenas de presos políticos. No ano seguinte foi sagrado cardeal e continuou a luta pelos direitos humanos, colecionando rusgas com os militares e reprovações de setores mais conservadores da Igreja.
Na época, o governo Médici cogitou expulsar do País seu amigo Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, MT, que defendia os índios e combatia a ditadura. Dom Evaristo pediu audiência com o presidente para dizer-lhe que se o ato fosse consumado, ele tinha uma pasta cheia de documentos para divulgar perante o Mundo os horrores da ditadura brasileira. O ato foi suspenso. Em 30/3/1973, junto com o bispo de Sorocaba e mais 24 padres, reuniu 3 mil pessoas na Catedral da Sé para celebrar a missa de 7º dia do estudante Alexandre Vanucchi Leme, morto pela policia no Rio de Janeiro. A partir daí a Igreja assume uma posição pública contra a ditadura militar. Ainda em 1973, vendeu o palácio episcopal de São Paulo e foi morar no bairro do Sumaré. O dinheiro foi utilizado na “Operação Periferia”, afim de criar centros comunitários nos bairros afastados, consolidando o trabalho da pastoral. No mesmo ano promoveu a “Semana dos Direitos Humanos”, com a divulgação de 150 mil folhetos nas igrejas e na Rádio 9 de Julho, da Arquidiocese, que logo teve sua concessão cancelada pelo governo.
Em meados de 1975 ocorreu a prisão do jornalista Vladimir Herzog, que morreu nas dependências do II Exército. Dom Evaristo decidiu promover um ato ecumênico na Catedral da Sé, contando com a participação do pastor Jayme Wright, da Igreja Presbiteriana, e do rabino Henry Sobel. O governador de São –Paulo Egydio Martins- e o presidente Geisel tentaram dissuadi-lo da empreitada, mas não conseguiram. O ato ecumênico foi realizado em 31/10/1975 na Praça da Sé, cercada por 500 policias. Foi a maior manifestação pública de repúdio à ditadura militar desde 1964. No mesmo mês, a CNBB lançou o documento “Não oprimas teu irmão”, condenando os atos de violência da ditadura. No ano seguinte, prestou solidariedade aos bispos Tomás Balduíno e dom Pedro Casaldáglia, acusados de subversivos pelo bispo de Diamantina –dom Geraldo Proença Sigaud-, e entregou uma carta ao Papa Paulo VI, esclarecendo os fatos. Em setembro realizou ato público na Praça da Sé e lançou o documento “Pela justiça e pela libertação”; condenou a invasão da PUC/SP pela polícia e apoiou o “Ato da Penha”, em solidariedade aos perseguidos pela ditadura, organizado por 20 entidades laicas, com o documento “Epístola dos leigos pela justiça e libertação”. Ao fim do ano, cedeu uma sala da Cúria Metropolitana para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, afim de atender o fluxo de perseguidos políticos vindos de países vizinhos, fugidos da repressão militar.
Em 1978 o projeto de anistia tramitava no governo e teve apoio integral da Igreja. A situação era tensa e Dom Evaristo pedia calma: “Precisamos estar unidos no momento em que a volta ao estado democrático se anuncia”. Em seguida foi eleito presbítero das Congregações Gerais dos Cardeais, que preparava o conclave para eleger o novo Papa, que veio a ser João Paulo II. Ao final do ano, discutia-se a eleição presidencial, quando o general João Batista Figueiredo foi escolhido entre os militares para completar o processo de abertura politica. Em 1979 Dom Evaristo lançou o documento “A Igreja e as reivindicações populares”. Dizia que a Igreja deveria “estar presente ao lado dos mais humildes e desprotegidos”. No mesmo ano posicionou-se a favor de uma reforma agrária mais justa e reorganização dos partidos políticos, após a extinção do MDB-Movimento Democrático Brasileiro e ARENA-Aliança Renovadora Nacional. Mostrou-se favorável a criação do PT-Partido dos Trabalhadores, considerando “normal a articulação de um partido operário”, entendendo “ser necessário que todos os setores da sociedade se articulassem” para que não perdessem o bonde da história “no momento em que o País passava por uma situação que exigia mudanças reais e não apenas reformismo”. Neste ano foi decretada a anistia, com o retorno de diversos líderes políticos que viviam no exterior
No ano seguinte, a mudança politica foi se alastrando com a criação do PT e a Igreja promovendo reformas com Dom Evaristo procurando mudar a própria estrutura da diocese da capital paulista. Em abril de 1981 esteve com o Papa João Paulo II e relatou seu projeto de subdividir a diocese em 10 ou 11 dioceses metropolitanas, cada qual com seu próprio bispo, e uma administração comum, “para que os bairros mais ricos possam auxiliar os mais pobres”. Tal reforma não prosperou naquele momento. No mesmo ano apresentou o documento “Fé e política: povo de Deus e participação política”, dirigido às CEBs. Em 1982, participou como membro fundador da “Comissão Independente Internacional das Nações Unidas para Questões Humanitárias”. Um dos resultados do trabalho da Comissão foi um documento sobre o desaparecimento de 7.791 pessoas entre 1977 e 1982, reunindo nomes de 27 países, entregue à ONU, OEA e ao Papa. Em 1984, o teólogo Leonardo Boff foi acusado pela Santa Sé de cometer heresia em seu livro Igreja: carisma e poder, ao afirmar que a Igreja nos países do Terceiro Mundo deveria contribuir para a “libertação dos oprimidos” e não limitar-se ao papel de “espectadora dos dramas sociais”. Dom Evaristo, junto com 2 cardeais, intercedeu junto ao Papa em favor do Frei Boff. Mas não houve jeito e o Frei foi afastado da Igreja por 11 meses e pouco depois largou a batina. No ano seguinte Tancredo Neves venceu a eleição presidencial, mas faleceu antes de assumir o cargo e o vice Sarney tomou posse como presidente.
Dom Evaristo tornou-se um destacado interlocutor da sociedade civil junto ao novo governo e passou a fazer um balanço dos estragos feitos pela ditadura no período 1964-1979. Sob sua coordenação, uma equipe de 30 pessoas pesquisou 707 processos envolvendo presos políticos analisados pelo STM-Superior Tribunal Militar. A pesquisa resultou na edição do livro Brasil – nunca mais. No lançamento, ele negou a qualquer ânimo revanchista e declarou que a intenção era realizar um registro histórico e objetivo dos fatos. A “Campanha da Fraternidade” de 1986 adotou como tema “Terra de Deus, terra de irmãos”, reforçando a necessidade de uma reforma agrária radical e pacífica num trabalho em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra. O fato suscitou reações contrárias da UDR-União Democrática Ruralista, acusando membros do clero de promover a discórdia e o confronto no campo. No Congresso Constituinte de 1986, a Igreja decidiu não apoiar abertamente qualquer candidato. No entanto, foi creditado a Dom Evaristo o apoio a candidatos do PMDB e PT ao Senado (Mario Covas e Hélio Bicudo) e à Câmara dos Deputados (José Gregori e Plinio de Arruda Sampaio. Tal empenho não foi suficiente aos seus propósitos, fazendo-o lamentar, em 1988, a derrota da reforma agrária na Assembleia Constituinte.
Enquanto isso, a reforma da Arquidiocese, proposta em 1981, for retomada em 1988 e consistia em dividi-la em regiões episcopais com bispos auxiliares, trabalhando de forma autônoma sob a coordenação do arcebispo. O projeto reapresentado previa que os bispos auxiliares fossem vinculados direto ao Vaticano. A proposta foi vista como uma estratégia de setores da Cúria Romana para diminuir o poder da Arquidiocese, considerada a maior do mundo e diferenciada no trato com a população da periferia e atenção aos direitos humanos. No mesmo ano, outra medida veio atingir a ação de Dom Evaristo. Seu principal colaborador –Dom Luciano Mendes de Almeida- então presidente da CNBB, foi designado para dirigir a diocese de Mariana, MG. A divisão da diocese de São Paulo foi concretizada em 1989 e a área de influência de seu arcebispo foi reduzida pela metade e ficou concentrada em áreas privilegiadas da capital, onde não havia possibilidade de expansão da linha pastoral progressista.
A lista de serviços prestados fez com que em 1989 fosse organizado o “Movimento Nobel da Paz D. Paulo”, uma iniciativa do argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz 1980, comandada pelo Serviço de Paz e Justiça na América Latina (Serpaj), contando com 30 entidades e apoio de umas 400 entidades em todo o País. Mesmo com todo esse envolvimento, que extrapolou as fronteiras do Brasil, seu nome não foi contemplado. No mesmo ano deu-se o encerramento da transição democrática no Pais, com as eleições presidenciais, onde Lula foi vencido por Collor e deu no que deu: empeachment de Collor em 1992. Para isso, Dom Evaristo deu uma expressiva contribuição pregando em favor da ética na politica. Fez publicar no jornal “O São Paulo” o manifesto “A pátria merece melhor sorte”, considerado um dos mais duros ataques desfechados por um membro da Igreja contra um presidente da República. Nas eleições presidenciais de 1994, foi um dos primeiros a apoiar a candidatura de Fernando Henrique Cardoso. Mas no curso da campanha, manifestou admiração também pelo candidato Lula e chegou a sugerir a união entre os dois partidos após as eleições.
Logo no inicio do novo governo revelou seu desapontamento com FHC, que vetou o reajuste do salário mínimo para 100 reais e declarou: “o cargo de presidente está mudando as ideias de um homem”, destacando a necessidade de “manter os salários dos pobres à altura da dignidade humana”. Era um homem respeitado pelos políticos e admirado pelo povo. Em seu 50º aniversário da ordenação como padre, numa celebração realizado no Ginásio do Ibirapuera, compareceram representantes dos 3 poderes e 8 mil pessoas para cumprimenta-lo. Ao completar 75 anos, encaminhou ao Vaticano pedido de renúncia à Arquidiocese, uma norma do Direito Canônico, mas o Papa demorou à atender o pedido. Em 1997 divulgou uma carta de apoio à marcha pela reforma agrária promovida pelo MST-Movimento dos Sem Terra e no mesmo fundou a “Casa da Oração do Povo da Rua”. Em abril de 1998 foi substituído por dom Claudio Hummes como arcebispo. No dia seguinte a transferência do cargo, foi proclamado arcebispo emérito de São Paulo e passou a exercer as atividades de jornalista fazendo o que sempre fez: ajudar quem precisa e promover justiça social. Em 28 anos de arcebispado, criou 43 paróquias, 1.200 centros comunitários, incentivou a criação de 2 mil CEBs na periferia e assinou 7 planos de Pastoral.
Em 2005 sofreu um infarto e se recuperou em sua casa no bairro do Jaçanã, onde passou a viver. A doença e a idade, porém, não arrefeceu a veia política. Em 2009 deu-se uma crise politica em Brasília e o PT retrocedeu de sua posição favorável ao afastamento temporário de Sarney da presidência do Senado, diante das denúncias feitas ao Senador. Na ocasião enviou um telegrama a seu sobrinho, o senador Flávio Arns, parabenizando-o pela “atitude coerente” em se desligar do PT. Daí em diante a saúde foi se complicando, vindo a falecer em 14/12/2016 aos 95 anos. O Papa Francisco enviou uma nota à Arquidiocese de São Paulo: “Dou graças ao Senhor por ter dado à Igreja tão generoso pastor e elevo fervorosas preces para que Deus acolha na sua felicidade eterna este seu servo bom e fiel, enquanto envio a essa comunidade arquidiocesana que chora a perda do seu amado pastor e à Igreja do Brasil, que nele teve um seguro ponto de referência, e a quantos partilham esta hora de tristeza que anuncia a ressurreição, uma confortadora bênção apostólica”.
Dom Evaristo tem um vasto curriculum, conforme se vê no site da Arquidiocese de São Paulo. Recebeu centenas de homenagens, prêmios, títulos e comendas aqui no exterior; 24 títulos de doutor “honoris causa” de universidades brasileiras e estrangeiras e 42 títulos de “cidadão honorário” de cidades brasileiras. Deixou 57 livros e diversos artigos publicados em jornais e revistas, incluindo uma autobiografia lançada em 2001: Da esperança à utopia: testemunho de uma vida. Outras biografias completam o registro de sua caminhada: O cardeal do povo (1979), de Getúlio Bittencourt e Paulo Sergio Markun; O cardeal do povo (1983), de Mauro Santayana; Paulo Evaristo Arns, cardeal da esperança e pastor da Igreja de São Paulo (1989), de Helcion Ribeiro; Dom Paulo Evaristo Arns: um homem amado e perseguido (1999) de Marilda Ferri e Evanize Sydow e Paulo Evaristo Arns, pastor dos pobres, cardeal da Igreja (1999), de Elza Ajzenberg.
Dom Paulo Evaristo deixou um legado enorme. Um deles é a publicação do documento “Brasil nunca mais”. Valeria a pena sua leitura a tantas pessoas nascidas após o AI-5, em 1968 e que andam pedindo a volta da ditadura.
Só ouviram falar deste famigerado ato através daqueles que o apoiou
Boa, Jose Domingos. Dom Paulo merecia tantas palavras. Parabéns. Abraços fraternos.
Prezados,
Dom Evaristo foi seguramente uma das maiores personalizades que o Brasil conheceu.
Mas aproveito a oportunidade para lembrar de sua irmão Zilda Arns, figura magistral, coordenadora da Pastoral da Criança, criadora da Multimistura que salvou milhões de crianças no Brasil e no mundo afora, morta em um desabamento no Haiti, onde desempenhava sua missão humanitária.
Foi indicada ao prêmio Nobel da Paz e injustamente não foi agraciada.
Que o nome de Dom Evaristo seja eternamente associado à sua irmã.
Abraços
Em breve Zilda Arns estará no Memorial das brasileiras
José,
Isto eu espero.
Fico indignado com o esquecimento da Dona Zilda, que dedicou sua vida às crianças pobres.
Abraço
Muito bom, Brito.
Parabéns e abraços,
Durval.