MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Eu tenho a mania de colecionar revistas antigas. Volta e meia eu releio uma revista que comprei nos anos 80 ou 90. Acho interessante comparar o que mudou e o que não mudou no mundo desde então. A forma de viver mudou muito, mas ao mesmo tempo certos hábitos e certos conceitos permanecem imutáveis. Como exemplo, vejam alguns trechos de uma edição de 1983 da revista SOMTRÊS (onde o colunista fubânico José Nêumanne Pinto era um dos críticos musicais).

A primeira coisa interessante é a apresentação de um produto – no caso, um microfone – produzido por uma certa indústria brasileira. Na matéria, o jornalista cita declarações do presidente da indústria:

“Mesmo que custe mais barato, não é justo tirar emprego dos brasileiros comprando componentes de fábricas no Japão ou nos Estados Unidos.” Certamente o industrial acha justo que todos paguem mais caro, porque o João, e não o Bill ou o Massao, não pode perder o emprego.

“Os microfones estrangeiros não têm nenhuma garantia. E, no entanto, continuam entrando milhares de aparelhos por mês, pelo contrabando.” Agora ficou mais claro: o consumidor não sabe escolher, por isso compra “errado”. O governo deve então “proteger” o consumidor, obrigando-o a comprar o produto X e não o Y.

A conclusão do artigo também é bastante esclarecedora:

“O industrial oferece explicações minuciosas sobre os processos industriais, defende tenazmente a indústria nacional, mas se recusa a revelar o preço de seu produto: ‘Ora, dizer simplesmente quanto custa um equipamento não reflete a longa experiência do fabricante, sua seriedade no trabalho e nem suas responsabilidades sociais. Nós temos 40 anos de experiência e fabricamos um bom microfone. Ponto final.’ “

E você, consumidor, achando que tinha direito de saber quanto pagar… Nada disso: você deve pagar aquilo que o fabricante acha que o produto dele vale, incluíndo aí todas as virtudes que ele mesmo se atribui. Claro que para isso é importante que o governo ajude, proibindo que você, pobre consumidor, caia no erro de querer escolher onde gastar seu dinheiro.

A repetição incessante da afirmação que “as pessoas não sabem escolher e alguém deve tomar conta delas”, que todos nós ouvimos desde crianças, sem dúvida é eficiente. Vejam o que aparece na seção de cartas da revista:

“Quero fazer um protesto […] em nome de todos os amantes de música internacional. Algumas gravadoras mutilam seus lançamentos, assassinando as capas dos discos. Encartes com letras e ficha técnica são suprimidos, sem contar o material de baixíssima qualidade. […] Será que alguém pode tomar alguma providência?”

Bem, meu caro, quem deve tomar alguma providência é você. Se o produto não lhe agrada, não compre. Compre do concorrente. É assim que funciona o mercado. É bem verdade que por aqui não há mercado, já que o governo proíbe você de comprar os discos vendidos em outros países e o obriga a comprar a versão fabricada aqui, que segundo você é pior. Ainda bem que existe o governo para tomar conta de nós, não é mesmo?

Mas em outra seção, a revista entrevista um advogado fã de ópera, que se queixa da falta de apresentações líricas em nossos teatros, e sugere:

“O município devia entrar com verbas para garantir a temporada lírica oficial. [..] No Brasil, há muito pouca probabilidade de um Placido Domingo se apresentar por aqui. [..] O custo é altíssimo.”

Não é uma maravilha? Eu gosto muito de uma coisa, mas não quero pagar o preço “altíssimo”. Então o governo deveria usar o dinheiro dos outros para bancar aquilo que eu gosto.

Trinta e seis anos depois, as coisas não mudaram muito. Não acho que vá ser diferente nos próximos trinta e seis.

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