MAGNOVALDO BEZERRA - EXCRESCÊNCIAS

Entre 1960 e 1962 estudei no Colégio Agrícola Nilo Peçanha (hoje Instituto Federal do Rio de Janeiro), em Pinheiral, RJ, completando o então chamado Curso Colegial.

Naqueles tempos, Pinheiral era apenas um distrito de Piraí. Fica a 12 quilômetros de Volta Redonda, ao lado da então Estrada de Ferro Central do Brasil. Pinheiral foi elevada à categoria de cidade em 13 de junho de 1995 e hoje tem cerca de 25 mil habitantes.

Tive, naquela época, três dos mais felizes anos de minha mocidade.

Conheci o Sr. Braga e D. Angelina, através de um de seus filhos, colega meu do Colégio, quando tomei conhecimento da história de amor que os envolveu. Na verdade, nunca soube o nome completo do Sr. Braga – mas isso não tem a menor importância.

O Sr. Braga formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1895, seis anos depois da proclamação da República. Estava noivo e buscava um lugar tranquilo para iniciar sua família, já que considerava o Rio de Janeiro uma cidade muito agitada para tal – imagino o que pensaria do Rio nos dias de hoje, onde os bandidos e traficantes trabalham à luz do dia protegidos pelos seus capachos, os ministros de nossos tribunais superiores. Como seu pai era próximo dos militares republicanos, conseguiu que fosse nomeado para o Cartório recém criado em uma cidadezinha próxima a Pinheiral no longínquo ano de 1900.

Chegando ao local, após uma cansativa viagem, tratou de tirar uma soneca para se recompor, mas uma forte dor de cabeça insistia em não deixar o jovem advogado relaxar. Foi então buscar algum analgésico na única farmácia da região, que pertencia ao pai de Angelina, uma jovenzinha de 17 anos, que estava noiva, de casamento marcado para dali a um mes, com convites distribuidos e festa contratada.

Na hora em que o jovem Braga chegou, o pai de Angelina havia saído da farmácia por alguma razão, e deixou a filha atendendo ao balcão.

Nosso Romeu ficou olhando para a sua Julieta e não conseguiu dizer nada. Angelina ficou olhando para o seu jovem Romeu e também não falou nada. Seus olhares se encontraram e, em um instante, caminharam juntos até um longínquo tempo, quem sabe, de uma vida passada. E assim, mudos, ficaram se olhando por um tempo que pareceu eterno, mas que não durou mais que alguns minutos.
A dor de cabeça desapareceu. Braga não se lembrou mais do que veio comprar, balbuciou alguma coisa sem nexo e foi embora, errante por um caminho em que seus passos e seus pensamentos apenas caminhavam.

O casamento de Angelina foi cancelado na semana seguinte. O noivado de Braga foi posto nas calendas gregas para alguma das encarnações futuras.

Imagine vossuncê o escândalo que varreu o lugar e o que eles tiveram que enfrentar nas suas famílias.

Os dois se casaram dois meses depois.

Ao casamento os pais e irmãos, dele e dela, não compareceram. As únicas pessoas que participaram da cerimônia, além do padre e do juiz de paz, foram dois casais de amigos do Rio de Janeiro, que serviram como testemunhas.

Quando conheci o Sr. Braga e a D. Angelina em 1961 eles moravam em um grande e antigo casarão no meio de uma quadra. Todos os dias os dois, já idosos, davam uma volta em torno do quarteirão. Era visível o carinho de um pelo outro. A idade avançada já mostrava seus estragos. Andavam sempre devagarinho, de mãos dadas, o Sr. Braga apoiado em uma bengala e D. Angelina apoiada nele.

Eram então extremamente queridos e respeitados na cidadezinha, depois de muitos anos de isolamento. Tiveram 5 filhos, o último dos quais o meu colega.
Nunca se teve conhecimento de que os dois algum dia tiveram uma leve discussão sequer. O amor e a consideração de um pelo outro eram patentes nos olhares carinhosos e nos gestos dos dois velhos. A casa deles, sempre com flores, era um refúgio de paz.

Um sábado de madrugada, no ano de 1962, meu último ano naquela região, o Sr. Braga encantou-se enquanto dormia. Não deve ter sentido nenhuma dor quando deixou este mundo.

A partir desse dia D. Angelina não mais saiu de casa para andar em volta do quarteirão.

Exatamente no sábado seguinte, na mesma hora da madrugada, o Sr. Braga lá estava esperando por ela, e D. Angelina nem aguardou o acordar de seu sono para encontrar-se com ele.

7 pensou em “O SR. BRAGA E D. ANGELINA

  1. Magnovaldo, aprecio sobremodo seus escritos. Este, tocou-me profundamente. Também sou oriundo de uma escola técnica de agricultura, que foi paradigma no ensino no RGSul, e onde passei os melhores anos de minha juventude (1964 a 1967). O acesso à escola era disputado através de concurso. O nível do ensino era de tal ordem que não precisávamos frequentar cursos pré-vestibulares. Da minha turma a maioria ingressou nos cursos de Agronomia e Veterinária, outros na Medicina, Economia e Geologia,, como eu. Infelizmente hoje a minha querida ETA está completamente desestruturada por ação de sucessivos “luminares do ensino”. Um fraterno abraço.

    • Prezado Jaime:
      Fico extremamente contente em saber de um ex-colega de Escola Agrícola. Agradeço muito seu elogio a este escrivinhador de coisas da vida.
      Em nossa época não só havia o ensino da competência de qualquer escola séria – Português, Matemática, Geografia, História, Ciências, etc. – como também se reforçavam muitíssimo os conceitos de honra pessoal, patriotismo e deveres cívicos.
      Nas duas Escolas Agrícolas em que estudei – em São Vicente, Mato Grosso e em Pinheiral, Rio de Janeiro, hasteávamos a Bandeira brasileira todas as segundas-feiras pela manhã, cantando o Hino Nacional, e a arriávamos às sextas-feiras ao final do dia, igualmente cantando o respeitado Hino.
      Sua observação sobre as profissões escolhidas por vocês, sem preparação de cursinhos, é válida para todos nós. Infelizmente, como você disse, nosso País foi tomado pela incompetência, desonestidade, corrupção e desmazelo pelo idealismo dessa escumalha fedorenta de vagabundos.
      Tenho certeza, entretanto, que pelo menos em nossos espíritos maduros a luz do que é correto continua a brilhar, e isso certamente está sendo passado para os nossos filhos e netos.
      Desejo que você tenha um final de semana cheio de saúde, paz, alegria e prosperidade junto aos seus queridos.
      Um grande abraço,
      Magnovaldo

  2. Parabéns, prezado Magnovaldo, pelo belo texto.
    É impressionante, como o destino aproxima as pessoas e depois separa para sempre.. .
    Fiquei impressionada com o encontro do Sr. Braga e D. Angelina, quando jovens, numa farmácia de uma cidade do interior, quando ela estava de casamento marcado com outro rapaz. E dois meses depois era com o Sr. Braga, que ela se casava. Casamento feliz, com cinco filhos e uma vida longa e de muita união e felicidade.
    O amor verdadeiro, à primeira vista, tem algo de sublime e de eterno.

    O encantamento dos dois, um numa semana, outro na semana subsequente, não foi mera coincidência.
    .
    “Há mais coisas entre o céu e a terra, do que supõe a nossa vã filosofia” ( William Shakespeare , no ano de 1600)

    Um ótimo final de semana, com muita saúde, alegria e Paz!

    • Divina Violante: o acontecido com aqueles dois espíritos, já em avançados anos quando os conheci, mexeu com minha compreensão a respeito da eternidade da vida e dos sentimentos. Até hoje, 51 anos depois, lembro-me de como aqueles episódios marcaram o mistério do que “acontece entre o céu e a terra”.
      Sinto-me, muitas vezes, um reles inseto tentando entender as estrelas. Como não conhecemos nem uma pequena fração do que ocorre nisso que chamamos de vida, temos medo do que vem pela frente. É a velha história: para um grilo, um lindo passarinho é apenas um monstro.
      Tenha um final de semana cheio de saúde, paz e alegria.
      Um estralento beijão shakespereano para você.
      Magnovaldo

    • Brigadão, Nonato. Muita gentileza de sua parte. Tenha um final de semana com muita saúde, paz e alegria junto aos seus queridos.
      Abraços,

  3. Que linda história amor, querido amigo do coração Magnovaldo.

    Só o amor é capaz dessa divina proeza shakespeareana.

    No caso do Sr. Braga e da Sra. Angelina, o fado já havia traçado o destino dos dois.

    Viveram para o amor e encantaram-se para a eternidade, juntos.

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