Como se fora um texto de uma peça teatral, lido e relido várias e incansáveis vezes, até decorar. Afinal, é uma representação para determinado público.
Eis que as cortinas se abrem, e, mesmo diante de tanto tempo (já se vão mais de 70 anos), vejo a figura da minha mãe, com a única filha “escanxada” – forma de falar cearense – no lado esquerdo, sobre a bacia, enquanto mexia o papeiro do mingau com a mão direita.
A menina, com uma coriza incurável, enquanto chorava pela demora do mingau, deixava escorrer aquele catarro nariz e boca abaixo, que descia pelo ombro da mãe.
– “O papeiro é meu”! Gritava eu.
– “É meu, eu pedi primeiro”! Gritava meu irmão mais novo.
Enquanto a mãe se apressava em apagar o fogo, ao tempo que lavava a mamadeira (no Ceará, há quem chame “chuca”), os dois irmãos, entre empurrões, digladiavam pela posse do papeiro, onde a mãe, de propósito, deixava sempre um pouco do mingau.
E a rinha acabava, quando a mãe, com a necessária autoridade, decidia:
– “Hoje é do José”! Mas, não lamba a colher de pau, finalizava!
Leite em pó distribuído pelo FISI
Há muito tempo existe o leite Ninho. Depois, apareceu o Mococa, e anos depois, o Glória.
O dinheiro que o pai ganhava, feitas as demais despesas domésticas necessárias, mal dava para comprar duas latas de Ninho, a cada mês. Daí minha mãe precisar recorrer ao leite em pó do FISI, uma entidade americana que fazia a distribuição gratuita.
Minha mãe recebia aquele leite e colocava na lata vazia do leite Ninho. Ficava mais fácil “medir” quantas conchinhas podia usar para preparar o mingau. Duas conchinhas e meia eram suficientes para o mingau – quatro vezes por dia.
Por quatro vezes, a mesma cantilena:
– “O papeiro é meu”!
No último mingau do dia, o papeiro já não era mais de ninguém, pois os dois estavam dormindo – a escola esperava no dia seguinte.
A conchinha que media o leite em pó
Mas, antes mesmo da briga pelo papeiro onde ficava sempre um pouco de mingau, quando um dos dois irmãos “perdia a disputa”, o outro não falava nada. Nem podia falar. Metade da conchinha do leite em pó estava pregada “no céu da boca”.
O risco de ser flagrado e tomar uns catiripapos era grande, pois aquele leite recolocado na lata do leite Ninho, precisava ser regrado para “demorar até o fim do mês”!
O papeiro
A peça, em três atos, terminou. Mas, as cortinas continuam abertas e o texto imutável continua sendo escrito para ser decorado.
A atriz principal, no papel de mãe, não está mais no Teatro – certamente está preparando outros mingaus, embora não escute mais o som de:
– “O papeiro é meu”!
A menina com coriza escorrendo nariz abaixo pelo ombro da mãe, também já está no outro plano, o mesmo acontecendo com aquele que, em disputa saudável, dividia o privilégio do papeiro. Com certeza não precisa mais ficar calado por conta do leite em pó surrupiado colado “no céu da boca”!
Excelente crônica, mãe sempre presente na memória e no coração dos filhos.
Valter, pois é. Mas, nos dias atuais, muitos sequer sabem como chegaram ao mundo, desconhecem as noites de sonos que as mães perderam para acompanhar a febre alta do filho ou o monte de fraldas cagadas que tinha que lavar, o papeiro e a mamadeira que precisavam lavar – e, na primeira dificuldade que encontram com a velhinha, a manda para o asilo. Ou não é?
” Beba leite em pó Mococa “.Assim dizia a vaquinha.Saudades do meu tempo de menino em Maceió.
Carlos Francisco, eu nunca gostei de ver minha mãe comprar um litro de leite daquele homem que, montado num burro, vendia leite líquido de porta em porta. Eu gostava mesmo era de ficar com o leite em pó pregado no céu da boca. KKKKKKKKKKK