MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Chamar o Brasil de “País do Futebol” é um lugar-comum há décadas. Usamos tanto a expressão que acabamos não percebendo que ela significa muito mais do que parece. Dizer que somos o país do futebol não significa apenas que gostamos de futebol. Isso pode ser dito de muitos outros países. Mas aqui o futebol não é apenas um jogo, é uma metáfora para nosso modo de vida e para nossa personalidade coletiva. Nós vemos o mundo da mesma forma que vemos o futebol.

E como isso é na prática? Para começar, o torcedor brasileiro é diferente dos torcedores do resto do mundo. Em outros lugares, ser torcedor é apoiar o time, vencendo ou perdendo. Aqui, o torcedor acha que o time tem obrigação de ganhar. Além disso, o torcedor dedica pouco esforço em apoiar o seu time e muito esforço em odiar os times adversários. Na verdade, ódio e rancor são praticamente a síntese do torcedor brasileiro.

Um exemplo aqui da minha cidade: o Coritiba em 2024 teve um ano péssimo: não chegou à final do estadual, eliminado pelo Maringá; foi eliminado da Copa do Brasil na primeira fase, pelo Águia de Marabá; e teve um desempenho pífio na série B do brasileiro, terminando em 12º lugar. Deveria ser um ano para ser esquecido, mas os torcedores do Coritiba terminaram o ano eufóricos, rindo de orelha a orelha. Por quê? Porque o maior rival, o Athlético, foi rebaixado.

Essa postura do “o bom não é ganhar, é ver o outro perder” se espalha do futebol para o restante da vida, juntamente com outras expressões futebolísticas como “ganhar roubado é mais gostoso”. “Virada de mesa” e “ganhar no tapetão” fazem parte do futebol e também da vida cotidiana do brasileiro, que só é contra quando isso não o favorece.

Um torcedor típico não lembra muito do jogo da semana retrasada, mas é capaz de discursar, com minúcia de detalhes, desqualificando os títulos e vitórias dos times adversários. Pergunte a um palmeirense sobre o título de 2000 do Corinthians, ou a um corintiano sobre o título de 1951 do Palmeiras, por exemplo. Uma característica dessas discussões é o apelo seletivo ao “oficial”: quando conveniente, a realidade deixa de ter importância diante da versão defendida pelas “autoridades”, geralmente a CBF e a FIFA. Da mesma forma, quando é conveniente a CBF e a FIFA passam a ser entidades corruptas e parciais, dirigidas por pessoas de má índole (o que certamente tem base na realidade).

Não posso afirmar que o amor do brasileiro pelo futebol se deve às regras dúbias, à arbitragem duvidosa e sujeita a “interpretações”, à cultura do improviso que faz com que até o passado seja duvidoso. Mas é provável que sim, já que esse mesmo amor se reflete no dia-a-dia da administração do país:

– No futebol, todos acham normal ter dirigentes e “cartolas” envolvidos em escândalos e problemas com a polícia. No governo, ocorre o mesmo com políticos e altos funcionários. Em ambos os casos, o torcedor jura com os pés juntinhos que o cartola em questão é inocente e tudo não passa de armação dos adversários.

– No futebol, todos acham normal que as regras sejam interpretadas de uma forma hoje e de outra forma amanhã. No governo, a mesma coisa.

– No futebol, todos acham que os juízes são parciais, incompetentes e mal-intencionados, mas não reclamam porque acham que isso pode ser útil. Quando se trata dos “outros” juízes, é a mesma coisa.

– O futebol é dirigido por uma confederação e 27 federações, comandadas por pessoas desconhecidas que ninguém sabe direito como chegaram lá, só sabe que é muito difícil tirá-las. Nos cargos do governo acontece a mesma coisa.

– No futebol, ninguém dá importância à frase “que vença o melhor”. Todo mundo quer que vença o seu time, seja de forma honesta ou não, seguindo as regras ou não. Se acontece alguma coisa que é contra as regras mas vai prejudicar o time adversário, o torcedor defende essa coisa com unhas e dentes. Na política, o torcedor defende qualquer coisa, por mais absurda que seja, se achar que isso vai prejudicar o adversário.

A futebolização da política está avançando, e nas redes sociais o que é chamado de “debate” virou na verdade uma briga de torcidas organizadas, cada uma defendendo o “seu” político e atacando o “outro”. Nessa briga, lógica, ética e verdade não têm a menor importância. O importante é repetir palavras de ordem e xingar muito. Já chegamos ao ponto de ver brasileiros (de todos os lados) comemorando más notícias, desde que possam botar a culpa no político adversário.

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