O carrinho dos vários sonhos
Sobre a mesa, o calhamaço das provas do ano inteiro, carinhosamente organizado pela professora Mundica. Ali estavam as provas práticas do sucesso na escola, culminado com a aprovação para o ano seguinte. Durante anos, quase sempre o primeiro, segundo ou terceiro lugar da classe.
Aquele calhamaço comprovava e esperava o reconhecimento paterno pelo esforço em retribuição ao investimento e zelo. Funcionava como se fosse aquela carta endereçada ao Papai Noel.
Não tínhamos lareira, nem árvore de Natal, mas sempre tivemos o fogo aceso da esperança.
Tão logo a claridade do dia se despedia, prometendo voltar diferente na manhã seguinte para satisfazer a ansiedade, deitávamos e sonhávamos de olhos abertos para tentar flagrar aquele velhinho vestido de vermelho, cabelos e barbas brancas, carregando um pesado saco de presentes.
Debaixo da rede, quando tínhamos entre 6 e 8 anos de idade, uma bacia velha de alumínio era colocada para proteger o piso rústico da casa da urina do menino Zé – tijolos de barro cozido, sem a tecnologia dos dias de hoje – e evitar a necessidade da lavação diária.
A “suíte” era ocupada por três irmãos em diferentes idades: eu, 8 anos; João Hélio, 6 anos; e Jandira, 5 anos. João e Jandira, são falecidos. Eu estou aqui, em lágrimas, “tentando” contar a história.
A boneca “negra” desejada por Jandira
Somente quando completei 12 anos foi que compreendi, de verdade, que Papai Noel não existia. Foi, digamos, minha primeira grande decepção, ter que aceitar que “pessoa tão bondosa” que se preocupava em atender os sonhos de milhões de crianças mundo à fora, não existia.
Que bom seria, viver num mundo com Papai Noel e todas as boas coisas que só nos proporcionam alegria. Como se fôssemos crianças. Para sempre, envolvidas nas nossas bolhas de pureza e inocência.
Pois, ao atingir 13 anos, e ter certeza que Papai Noel era o meu Pai e que ele não era muito afeito às roupas vermelhas, e, muito menos, era adepto de deixar cabelos e barba crescerem – aqueles esperados presentes de Natal envolvidos no papel do merecimento, foram transformados em serra tico-tico, martelo, pregos, cola e folhas de lixa, para que eu fizesse o meu próprio brinquedo. Sem ter que esperar pelo Natal.
Foram tantos os brinquedos! Uma diversão, na primeira bifurcação da vida.
Ganhei, a partir de então, o material para, com a bênção do Criador, construir minha própria vida, seguindo fielmente o “croqui” do Pai Celestial, sem precisar esquecer que, por alguns anos, Papai Noel existiu. Pelo menos nos meus sonhos e ansiedades.
Jandira, a caçula, sonhava em um dia ganhar de Papai Noel uma boneca “diferente” daquelas que a cada ano sacudia para ouvir o “choro” na manhã do dia 25. Como hoje!
– Zé, escreve a minha carta pro Papai Noel! Me pediu.
– O que você quer pedir pra Ele? Perguntei.
– Uma boneca diferente das outras que já ganhei. Respondeu.
Me pus a escrever a carta d´ela pro Papai Noel. Escrevi com letras “diferentes” – que hoje entendo ser um “grifo” – a necessidade de que a boneca fosse diferente das tantas que ela já recebera.
Claro que Papai Noel, bondosamente atendeu. Quando, alguns anos atrás, na manhã do dia 25 de dezembro, Jandira rasgou o papel que embrulhava a caixa do presente. Chorou de alegria, ao receber uma boneca “negra” feita de pano.
Coisa rara, que certamente não foi fácil para Papai Noel encontrar.
Nos dias atuais já não temos mais o Papai Noel, a bacia para aparar o mijo noturno, e nossos sonhos infantis de recebermos bonecas, carrinhos, pregos, martelos, serra tico-tico, cola e madeira foram transformados em celulares, tabletes, ou um cartão de crédito. Nossos sonhos ingênuos foram tolhidos e “deram pau” na nossa criatividade.
Como escreveu Saint-Exupèry: “já vem tudo pronto”!
Eu sempre viajo em suas crônicas, Zé, e atravesso o tempo para um mundo que não foi meu. Mas que por alguma coincidência se torna um elo para o mundo que foi meu.
Obrigado.
Jesus nasceu! Viajou numa daquelas estrelas que orientam os Três Reis Magos. Estamos aqui,todos. Sãos e salvos e, na nossa mente continuaremos “colocando a bacia debaixo da rede” – pois jamais deixaremos de ser os mijões da infância. Alguns, com sorte, trocam a bacia pelos pés. Mas terão a sorte de continuarem “mijando”!