MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Visitei a Espanha duas vezes, e gostei muito. É um país bonito com uma gente bonita. Como todo país europeu hoje em dia, nos dá exemplos de como as coisas podem funcionar muito melhor do que funcionam aqui. Mas não é apenas o presente, mas também o passado da Espanha que tem muito a nos ensinar.

A Espanha como a conhecemos nasceu na passagem do século 15 para o 16, quando o casamento dos “reis católicos” Fernando e Isabel uniu os reinos de Castela e Aragão. O neto deles, Carlos V, consolidou esta unificação criando um estado altamente centralizado, onde o governo mandava em tudo, controlava tudo, e, na prática, era dono de tudo. Seus sucessores Felipe II, Felipe III e Felipe IV controlaram um império que abrangia boa parte das Américas, além das Filipinas na Ásia. Das Américas, a Espanha recebia ouro e prata, em enormes quantidades, que faziam com que a Espanha fosse considerado o reino mais rico da Europa.

Mas o dinheiro fácil corrompe, e a Espanha não escapou dessa sina. O ouro das Américas sustentava um governo gigantesco e controlador, que exigia ter a exclusividade da riqueza. Empreendedores podem ficar ricos, então o empreendedorismo era proibido. Banqueiros também podem ficar ricos, então não havia banqueiros – e o governo emprestava dinheiro de banqueiros holandeses, suíços e alemães. Um povo inteligente pode questionar seus governantes, então o povo era mantido na ignorância. Para completar a tarefa de manter o povo quieto, o governo fez uma parceria com a igreja, que ameaçava os súditos com o inferno se não reconhecessem a autoridade inquestionável do rei. Em troca, a igreja era dona de boa parte das melhores terras do país, e seus mais de um milhão de membros eram isentos de impostos.

(Esse medo da riqueza privada pode ser visto até hoje no Brasil. Nossos governantes, tão intrometidos e mandões como os antigos espanhóis, adoram o cidadão pobre que vive de mendigar benefícios em troca de votos, mas odeiam qualquer empreendedor que consiga progredir, a menos que ele se torne amigo e “parceiro” do governo.)

Talvez a realidade da Europa de séculos atrás seja um pouco distante para ser vista como exemplo, então saltemos para a Espanha do século 20. Entre 1936 e 1939, o país viveu uma guerra civil que custou trezentos mil mortos e quase meio milhão de exilados, e destruiu o pouco que havia de infra-estrutura no país. Quando a guerra civil terminou, a Europa estava se lançando na Segunda Guerra Mundial, da qual a Espanha ficou de fora por ser irrelevante. E como o vencedor da guerra civil, o general Francisco Franco, havia sido aliado da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, a partir de 1945 a Espanha tornou-se um pária dentro da Europa.

A política adotada por Franco foi de isolamento. Dizia-se que importar era anti-patriótico, para disfarçar o fato de que não havia dinheiro para importar. O nacionalismo era tão forte que até um nome prosaico como “salada russa” foi mudado para “salada imperial”. A auto-suficiência, batizada em espanhol de “autarquia”, era a palavra de ordem.

Os partidários do nacionalismo defendem que ser auto-suficiente e fechado ao comércio é bom para um país: evita “fuga de capitais” e serve para “gerar empregos”. Os economistas keynesianos defendem, usando a famosa alegoria da janela quebrada, que é necessário “estimular a demanda”. Se uma janela quebrada é bom para a economia, três anos de guerra civil devem ser o paraíso: havia praticamente tudo para reconstruir. Será então que a combinação de nacionalismo econômico e estímulo à demanda transformou a Espanha pós-guerra civil em um país rico? Vou deixar a resposta para um dos meus autores favoritos, o espanhol Juan Eslava Galán:

“A fome e o contrabando foram o acompanhamento de uma década de miséria e sofrimento, epidemias, sarna, percevejos, piolhos, lampiões de carbureto, oficinas de conserto de escovas de dente, filas para receber sobras de sopa em frente aos quartéis, bondes lotados, roupas esfarrapadas, retalhos, sobras, sub-locações… Os estrangeiros que visitaram a Espanha naqueles tempos registraram seu cheiro de trapo úmido, de miséria, de sujeira acumulada, de gordura rançosa.”

Por que não funcionou? Porque os dois conceitos são equivocados.

A produtividade depende da existência de capital, que forma o que se chama “meios de produção”. Sem capital, a produção depende apenas da mão-de-obra, e a produtividade é baixa. Se um país não tem capital próprio, precisa abrir sua economia para o investimento estrangeiro, para que a produção de riqueza aumente. O processo se realimenta: quanto mais bens de capital, mais produtividade; quanto mais produtividade, mais riqueza é gerada, e uma parte dessa riqueza se transforma em mais bens de capital, e assim por diante. Para exemplos práticos da mesma época pós-segunda guerra, basta olhar Japão e Coréia do Sul. Obviamente, não adianta receber dinheiro estrangeiro se o ambiente local não valoriza a produtividade e o reinvestimento, ou se o governo usa o dinheiro para obras faraônicas e inúteis.

Os que amam governos grandes, e vivem à sombra deles, costumam dizer que um país fechar-se para o mundo é bom porque “gera empregos”. Ora, o que interessa é gerar riqueza, não gerar empregos. Obrigar o consumidor a dar dinheiro para um empregado improdutivo é apenas uma forma disfarçada de esmola ou talvez de assalto. Economias fechadas como a Espanha dos anos 40 ou o Brasil de hoje são boas apenas para aqueles empresários amigos do governo, que enriquecem vendendo produtos caros e ruins a consumidores proibidos de escolher. Não se trata de um “defeito crônico” de nossa mão-de-obra, mas de uma simples questão de estímulos: quem não tem concorrência, não precisa se esforçar para melhorar. Com o tempo, a própria incompetência se torna argumento, e os empresários passam a ameaçar: “se abrirmos o mercado, não poderemos competir e haverá desemprego!”. A “solução” é obrigar o povo a pagar cada vez mais caro por produtos cada vez piores, para que se torne cada vez mais inegável nossa inferioridade diante do resto do mundo.

Quanto ao “estímulo à demanda”, é evidente que quebrar vidraças não é “bom para a economia”. O que a economia precisa é aumento de oferta, não de demanda. Se existe produção, alguém produziu e ganhou com isso, e a demanda surge naturalmente. Mas sem produção, só pode haver demanda com dívida ou com dinheiro criado pelo governo, dois modos garantidos de gerar inflação e bolhas. Claro que em um país devastado pela guerra, existem oportunidades, mas estas oportunidades devem ser vistas pelo lado da produção: é necessário trabalhar para recriar a riqueza que foi destruída.

Mas voltando à Espanha, como ela se safou? Abrindo a economia, óbvio. Na metade da década de 50, o país começou a se abrir para o mundo. Vieram indústrias estrangeiras; bancos estrangeiros trouxeram capital para financiar empreendimentos locais; o comércio aprendeu a receber turistas de outros países. Novamente citando Galán:

“…a nave pátria seguia, de vento em popa, no rumo do desastre. Era renovar-se ou morrer. Urgia deixar de lado o orgulho e lançar-se nos braços do sistema capitalista e da economia de mercado.”

“… após quinze anos de de difícil equilíbrio no trapézio da escassez, estávamos saltando às redes da abertura, da liberalização, do neocapitalismo, da abundância consumista, da sociedade do conforto. Em um estalar de dedos se abriram as comportas […] Era preciso ser muito ingrato para negar que o povo desfrutava de um bem-estar sem precedentes. Fogão a gás, conjunto estofado adornado com paninhos de crochê, secador de cabelo, batedeira Turmix, geladeira Frigidaire, rádio transistor japonês, móveis de fórmica em estilo nórdico, água quente em metade das moradias. Um novo mundo amanhecia.”

A ditadura de Franco durou até 1975, relembrando uma tese na qual insisto muito: não devemos misturar política quando analisamos economia. Na economia, o certo é o certo, seja em uma ditadura, democracia, república ou monarquia. A economia segue princípios simples (embora alguns intelectuais insistam em tentar complicá-la) e, mais importante, fixos. A política, ao contrário, não tem nada de fixo, e o inimigo de ontem é o aliado de hoje. Olhar a economia sob influência política só traz confusão. Basta ver o quanto já se gastou de tempo e esforço discutindo se o nazismo era “de esquerda” ou “de direita”, como se essa definição servisse para algo ou alterasse alguma coisa da realidade.

Com a morte de Franco, a Espanha tornou-se uma democracia e passou a fazer parte da União Européia. Que exemplos ela nos dá? Hoje, um espanhol pode viajar até a França, Alemanha ou Itália e voltar de lá trazendo uma TV, uma geladeira ou mesmo um carro novo, e não haverá ninguém na fronteira para olhar. Se um brasileiro viajar para a Argentina ou o Paraguai, membros do Mercosul como nós, ao passar pela fronteira será revistado como um criminoso, e corre o risco de voltar a pé se por azar seu carro estiver com pneus novos. Outra diferença: enquanto por aqui se proclama a necessidade da “independência do Banco Central” e de seu direito de fabricar dinheiro e inflação, a Espanha não tem nem Banco Central nem moeda própria: usa o Euro, sobre o qual os políticos espanhóis não têm poder nenhum.

Os exemplos estão aí para quem quiser aprender. Infelizmente, uma velha frase diz “a primeira coisa que aprendemos com a história é que as pessoas não aprendem com a história”.

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