Editorial Gazeta do Povo
Coletiva de imprensa de divulgação do balanço da aplicação do Enem
O primeiro Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do terceiro mandato de Lula não surpreendeu: quem esperava uma prova ideologicamente carregada acertou em cheio. O ataque grosseiro ao agronegócio tem sido o ponto mais destacado da primeira parte do exame, realizada neste domingo com os conteúdos de linguagens, ciências humanas e redação; mas outras escolhas de textos refletem perfeitamente a forma como o petismo quer que os jovens pensem, que atitudes eles devem aprovar ou repudiar, e que pensadores precisam ter como referência.
Lula, como bem sabe todo brasileiro minimamente informado, é hostil ao agronegócio. O então candidato insultou os produtores rurais durante a campanha eleitoral, chamando-os de “fascistas”; e, uma vez empossado, deu rédea solta ao Movimento dos Sem-Terra (MST), que em dez meses de Lula 3 já realizou mais invasões que em todos os quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro. Os burocratas do Ministério da Educação responsáveis pela seleção das questões do Enem não quiseram ficar atrás, e usaram um trecho de um artigo acadêmico que demoniza o avanço da agropecuária no Cerrado, associando a atividade à violência no campo. Outra pergunta usou um texto de 2006 que liga o cultivo de soja e a pecuária ao desmatamento: “o desmatamento tem a ver também com a expansão da soja, porém atribuir a ela o fato principal parece não totalmente correto. Parto da compreensão central de que a lógica que gera o desmatamento está articulada pelo tripé grileiros, madeireiros e pecuaristas”, diz o autor citado.
A ideologia e as afinidades petistas ainda aparecem em outras perguntas; uma delas comete a proeza de abordar a “política demográfica” chinesa para a província de Xinjiang sem mencionar o genocídio dos uigures – no máximo, um dos textos usados afirma que a China estimula um “fluxo migratório” para “aumentar a proporção de chineses da etnia Han em relação à população local de etnias turca e muçulmana”. Mesmo nas questões em que o conteúdo do texto não tem ligação direta com as respostas – por exemplo, na prova de linguagens, em que as perguntas estão ligadas a aspectos formais ou estilísticos – o viés é inegável. É o caso, por exemplo, de uma questão que traz números sobre homicídios em que as vítimas são negras, mas sem nenhum outro tipo de contextualização; uma pergunta baseada em um trecho de reportagem sobre união homoafetiva; ou a menção à participação da Laurel Hubbard, atleta transgênero da Nova Zelândia, na competição feminina de levantamento de peso nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Já se vão mais de 15 anos desde que a Gazeta do Povo passou a denunciar com mais firmeza a ideologização de exames vestibulares e concursos públicos, e a situação apenas piorou, graças inclusive à onipresença do Enem. O exame havia sido criado em 1998 como meio de avaliação da qualidade do ensino médio; foi no primeiro mandato de Lula que a prova se tornou meio de admissão ao ensino superior, e desde então foi ganhando cada vez mais relevância, a ponto de já ter substituído, completa ou parcialmente, vestibulares outrora importantíssimos. Quanto mais essencial o Enem se torna para quem almeja uma vaga universitária, especialmente nas instituições federais, mais influência têm os elaboradores e selecionadores das questões – que estão perfeitamente cientes deste poder.
Manuel Palácios, presidente do Inep (o órgão do MEC que elabora e aplica o Enem), respondeu às críticas afirmando que “ninguém precisa concordar com o suporte do item, nem o item está perguntando se o estudante concorda. A questão quer saber se o estudante é capaz de compreender um determinado texto”. O grau de cinismo impressiona; qualquer um sabe que, em um sistema educacional voltado para o bom resultado no Enem, os estudantes serão preparados para responder aquilo que o examinador quer. É aí que a semente da ideologia será plantada; mesmo que professores e alunos discordem, todos sabem o que será preciso dizer para ter sucesso e quais são as opiniões “proibidas”, e isso deixa sua marca, independentemente do que pensem os alunos. É por isso que o petismo transformou o Enem, que já não procura saber se o candidato está bem preparado intelectualmente, mas medir sua docilidade ideológica.