“Quando voltamos às aulas presenciais, ficou claro o quanto os alunos estavam atrasados no aprendizado. O tal “home schooling” não serviu para nada. Só que na volta, ao invés de um esforço conjunto para recuperar o tempo perdido, o que aconteceu foi o contrário. Os alunos passaram o tempo fazendo cartazes para o outubro rosa, depois para o dia da consciência negra, depois para o novembro azul e depois para o dia mundial de combate ao HIV. Acabou o ano e eu não consegui aplicar uma prova sequer. Os alunos não sabem nada de português, matemática, história ou geografia, mas sabem pintar cartaz que é uma beleza!”
“Sou professora de matemática. Os alunos precisando muito de revisão e aprofundamento da matéria, mas eu tive que perder uma aula inteira para falar do dia da consciência negra, e dar nota pela “participação” deles. Parece que a escola pública desistiu dos conteúdos e assumiu um papel que eu não estou bem certa qual é.”
Encontrei estas duas citações em uma discussão no Facebook. Para mim, elas refletem com clareza a complicada situação do nosso sistema escolar. Existem milhares de declarações como essas pela internet, todas dizendo basicamente a mesma coisa: nossa escola não quer ensinar. Nossos professores acham que sua função não é transmitir conhecimento, é alguma outra coisa. E toda a discussão ocorre isolada da sociedade, dentro dos muros universitários onde se escondem os doutores que acreditam ser os únicos que sabem o que é certo e o que é errado, em qualquer assunto.
Eu sempre acreditei que um doutor (do latim “doctoris”, “aquele que ensina”) é aquele que foi além daquilo que já se sabia: descobre uma nova técnica de cirurgia, projeta uma máquina que nunca tinha sido fabricada, inventa um novo remédio, constrói um computador mais poderoso do que os que existiam antes. Como diz o latim, é aquele que tem algo a ensinar aos outros; algo que é dele, não algo que ele ouviu dos outros e simplesmente repete, que é o que faz o professor comum (não estou dizendo que não há mérito nisso!).
No mundo acadêmico moderno, aparentemente, isso não é mais verdade. Para ser doutor, basta fazer parte da panelinha acadêmica, inventar um assunto qualquer, escrever uma tese (que de tese não tem nada) e mostrá-la a uma banca de amigos. Como disse outro comentarista naquele mesmo debate:
“A pesquisa científica no Brasil não é voltada para descobertas, é voltada para a produção de artigos. Quanto mais artigos um “pesquisador” escreve, mais verbas e status ele ganha, não importando a qualidade desses artigos. Isso é norma do CNPQ.”
Para aumentar a quantidade de artigos, pratica-se o que já foi chamado de “ciência salame”: é sempre servida em fatias. O que poderia ser um artigo só se multiplica em um monte de pequenos e repetitivos artigos, todos citando uns aos outros, porque o número de citações é um critério importante para a burocracia.
Essa situação é bastante amparada em um fenômeno curioso: embora o mundo acadêmico seja pródigo em auto-elogios, esses elogios partem da premissa de que somos um povo inferior, subdesenvolvido, menos capaz que os outros. A partir dessa premissa, qualquer coisa que se faz é louvada como uma “conquista”, da mesma forma que os pais olham os rabiscos de uma criança e dizem “que liiiindo!!!!”. Críticas vindas de fora, então, nem pensar: nossos doutores acham que só devem satisfações a si mesmos e aos demais membros de suas panelinhas.
Para ilustrar, vou citar um exemplo bem antigo, de meus tempos de colégio (1984). Um professor da Unicamp conquistou seu doutorado ao projetar uma memória dinâmica de 1 Kbits. Acontece que as memórias de 1 Kbits, consideradas de 1ª geração, haviam sido lançadas no mercado mundial em 1971, e já eram obsoletas. A indústria havia passado pela 2ª geração (4 Kbits), 3ª (16 Kbits), 4ª (64 Kbits) e em 1984 já estava na 5ª (256 Kbits). Mas no nosso mundo acadêmico um sujeito virou doutor porque “descobriu” como fazer algo que já era vendido nas lojas dez anos antes, e ainda declarou “É importante que as pessoas não pensem que o circuito está pronto para industrialização. Não foi isso que fiz, pois para um desenvolvimento desse nível no país são necessárias muito mais coisas. Espero que futuramente este projeto possa vir a ser aproveitado pelas indústrias.”
De 1985 a 1994, eu trabalhei na maior indústria brasileira de computadores da época, a COBRA. E mesmo em um ambiente supostamente empresarial, o clima era o mesmo. Falava-se abertamente que era útil e necessário “reinventar a roda”, porque as multinacionais imperialistas e malvadas “escondiam” seus segredos tecnológicos. É natural uma empresa não distribuir de graça o conhecimento que custou dinheiro para obter, mas na prática nem isso era verdade: a informática passava pela revolução dos microprocessadores, cujos fabricantes distribuiam livros, manuais e até cursos gratuitos para os possíveis clientes. Isso no restante do mundo, claro. Por aqui as “autoridades” repetiam o mantra de que a tecnologia era uma espécie de “magia negra” só acessível aos iniciados. O “ritual de iniciação”, claro, era fazer parte da panelinha que tinha acesso aos livros e manuais importados. E como essa panelinha era preguiçosa e muitas vezes entendia pouco do assunto, os “avanços tecnológicos” que eram comemorados aqui consistiam em mostrar como se fosse novidade cópias daquilo que os outros países tinham feito uma década antes. As impressoras, unidades de disco e de fita com que eu trabalhei até o início dos anos 90 foram todas lançadas nos anos 70 no resto do mundo.
Resumo da coisa toda: nossas universidades, amparadas em sua “autonomia”, fabricam seus próprios doutores; estes doutores conduzem as universidades como se fossem propriedade sua, e ignoram qualquer opinião que venha de fora. Estes doutores também transmitem esse modo de pensar para todos os que se formam nas “suas” universidades, e por isso o ensino básico segue o mesmo modelo, com professores que acham que os diplomas de licenciatura pendurados na parede dão a eles o monopólio do conhecimento e da verdade. O resto da sociedade deve apenas pagar a conta. Tem como dar certo?
Isto sem contar com a panóplia de títulos honoríficos distribuídos a mão cheia, como as honorabilidades e emeritudes aos que, nos conluios dos conselhos, fisgam essas homenagens.
Vade retro,…
Títulos e cargos, Arael. Muitos cargos, todos muito bem remunerados.
Escreve Arael: “Títulos honoríficos distribuídos a mão cheia, como as honorabilidades e emeritudes aos que, nos conluios dos conselhos, fisgam essas homenagens”…
Aos que não as conseguirem, por “N”motivos, deixo um alento: na Praça da Sé, nesta loucura chamada Sampa, qualquer título ou diploma, honorífico ou não, de qualquer coisa que se possa imaginar, sai por uma bagatela no pujante mercado clandestino a “formar honoráveis figuras” de índole puramente picaretística…
E já que estamos por conta do falecimento da Rainha, eis que os que desejarem ir até a agora terra do Rei Carlos III, até título de “Sir” andam a comercializar na citada Praça, pertinho de Sancho… kkkkk