VIOLANTE PIMENTEL - CENAS DO CAMINHO

Num passado remoto, chegava ao Estado de São Paulo, de navio, um amontoado de retirantes nordestinos, flagelados pela seca, com destino à lavoura do Café.

Entre eles, havia um sexagenário cego, Genaro, que não conseguia ver nem ser visto, por ser do tipo de gente que a gente não vê, “porque é quase nada”. Sua dolorosa e indesejável deficiência visual o tornava um “eu sozinho”. As pessoas pobres de espírito se afastavam dele, como se a cegueira pegasse.

A bem da verdade, a deficiência visual do cego o tornava totalmente incapaz para o trabalho na lavoura. Por isso, sua inclusão entre os retirantes era inadmissível.

De um modo geral, os retirantes não gozavam de tratamento digno por parte dos funcionários em serviço. Eram vistos por eles como carga indesejável e mal cheirosa, que lotava o navio.

Não eram considerados passageiros, mas apenas fardos de couro fresco, com carne magra por dentro, provocada pela fome, e pela triste carga do trabalho sob o sol causticante do Nordeste brasileiro, irmão da “bucha do canhão”.

Ao ser notada a sua deficiência visual, o cego Genaro foi interpelado pelo funcionário responsável pelo setor de imigração e explicou sua presença entre os retirantes como um grande equívoco de despacho. Seu destino seria o “Asilo dos Inválidos da Pátria”, no Rio, mas pregaram nas suas costas a papeleta do “Para a agricultura”, e ele foi “jogado” entre os retirantes destinados ao trabalho na lavoura do café. Como não tinha olhos para se guiar nem olhos alheios que o guiassem, estava vivendo o triste destino dos desvalidos e invisíveis.

– Por que para o Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio? Perguntou-lhe o funcionário. É voluntário da Pátria?

– Sim, respondeu o cego. Fiz cinco anos de campanha no Paraguai e lá apanhei a doença que me pôs a noite nos olhos. Depois que ceguei, caí no desamparo. Um cego não serve para nada.

E a amargura extrapolou do peito do cego, numa chuva de lágrimas.

E reclamou suspirando, falando consigo mesmo e revirando os olhos esbranquiçados:

– Se o meu capitão soubesse da minha situação, viria ao meu socorro…Eu o perdi de vista, mas não o perdi da memória. Não tenho a menor chance de me comunicar com ele. Se o encontrasse, tenho certeza de que até meus olhos voltariam a enxergar…

– Não tem família?- perguntou o funcionário.

– Tenho uma menina, que não conheço.. Quando ela veio ao mundo, nos meus olhos já havia trevas. Daria o que me resta de vida para vê-la, ao menos um instante.

E o cego continuou mergulhado na tristeza infinita da sua noite sem estrelas.

A conversa impressionou o funcionário, que a levou ao conhecimento do Major, Diretor da Imigração.

Ao tomar conhecimento de que o cego Genaro participara da campanha do Paraguai, como soldado de 70, o Diretor interessou-se pelo caso e foi pessoalmente procurá-lo.

– Então, meu velho, é verdade que participaste da campanha do Paraguai?

O cego ergueu a cabeça, tocado pela voz amável.

– Verdade, sim, meu patrão . Vim no 13 e logo depois de chegar ao Império do Lopez (Francisco Solano Lopez) entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de Tuiuti, nosso batalhão foi dizimado como um milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos eu e uma porção de camaradas. Fomos, então, incorporados ao 33 paulista, a fim de preencher os claros, e nele fiz o resto da campanha.

O Major, Diretor da Imigração, também era veterano da guerra do Paraguai, e por coincidência servira no 33. Por isso, interessou-se, pela história do cego, passando a interrogá-lo com veemência:

– Quem era o teu capitão?

– Um homem que, se eu o encontrasse, minha vida tomaria outro rumo e ele faria tudo para que eu recuperasse a visão… Um verdadeiro santo… .

– Como se chamava?

– Capitão Bocaiuva de Sales.

O major, ao ouvir esse nome, sentiu suas carnes trêmulas e um arrepio imenso. Respirou fundo e continuou:

– Conheci seu capitão. Foi meu companheiro de Regimento. Era um homem péssimo e grosseiro para com os soldados.

O cego, até ali vergado em atitude humilde de mendigo, ergueu o busto corajosamente e, com a voz trêmula de indignação, protestou:

– Pare aí! Não blasfeme! Não ofenda um homem santo como o meu capitão. Ele era um pai para os soldados! Perto de mim, ninguém o injuria!!! Convivi com ele durante anos, como sua ordenança e nunca o vi praticar o menor ato de maldade contra ninguém!

O tom firme do cego comoveu o Major. e ele percebeu que nem a miséria conseguira apagar do peito do velho soldado as fibras heroicas da lealdade.

O major se conteve por um momento, mas logo prosseguiu na provocação, para ver até onde iria a lealdade do cego ao seu idolatrado capitão:

– Capitão Bocaiuva de Sales era um covarde!!!…

Num assomo de ira e indignação, as feições do cego Genaro se transformaram. Seus olhos anuviados pela catarata revolveram-se nas órbitas, num terrível esforço para ver a cara do infame detrator. Sua vontade era atacá-lo, como fazem as feras. Mas, por não ser ninguém, procurou se conter.

Pela primeira vez na vida, Genaro sentiu a infinita fragilidade dos cegos. E caiu em si, com a alma esmagada. Sua cólera transformou-se em dor e a dor fez correr dos seus olhos um rio de lágrimas. E chorando, murmurou com a voz embargada:

– Não se insulta assim um cego…

Mal pronunciara estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, também em lágrimas, que dizia:

– Abraça, amigo, o teu velho capitão! Sou eu o antigo Bocaiuva!

Confuso e desorientado diante do rumo tomado pela conversa, e receoso de uma insídia, o cego vacilou, sem acreditar no que estava ouvindo.

– Dúvidas?!!! – exclamou o Major – Dúvidas de quem te salvou a nado na passagem de Tebiquari?

Ao ouvir aquelas palavras mágicas, os receios do cego Genaro se dissiparam como fumaça. Livre de dúvidas e chorando como uma criança, abraçou-se aos joelhos do Major Bocaiuva de Sales, exclamando, como se estivesse sonhando:

– Achei meu capitão! Achei meu Pai! Minhas desgraças se acabaram!!!…

E realmente, a roda viva do cotidiano carregou a tristeza do cego Genaro pra lá, Sua vida mudou da água para o vinho.

Internado num Hospital às expensas do Major Bocaiuva, seu antigo Capitão, foi submetido à cirurgia de catarata e recuperou 100% a capacidade visual.

Foi à janela e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as árvores, o céu, os pássaros e as flores!

Sentia-se ressuscitado, pois, antes, estava morto em vida.

Não cansava de repetir:

– Eu não dizia, que se reencontrasse o meu capitão, até a luz dos meus olhos eu teria de volta? Foi Deus quem me reaproximou do capitão!!!

E Genaro, recuperado da cegueira, voltou para o Ceará, nadando de felicidade e repetindo frases do cearense José de Alencar, um dos maiores escritores brasileiros ((1829-1877):

“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.”

14 pensou em “NOITE SEM ESTRELAS

  1. Cara e Divina Violante, linda crônica.

    Comovente a história do retirante nordestino Genaro.

    O que é a força da amizade. Passaram-se décadas e a certeza do Genaro que seu Capitão Bocaiúva de Sales não lhe faltaria sempre o acompanhou. Deus e o Capitão lhe recompensaram

    Obrigado por esta história e fique com Deus, minha amiga.

    • Obrigada pelo gratificante comentário, prezado João Francisco!

      A força da amizade é insuperável.

      A lealdade do cego Genaro ao seu capitão se sobrepôs a tudo e a todos!
      Ele era uma alma boa e Deus o recompensou!!!

      Grande abraço, e uma ótima semana!

      .

    • Obrigada pelo comentário gentil,
      prezado Roberto Broc!

      A gratidão do cego Genaro ao seu capitão, mereceu a recompensa divina!

      Bom final de semana!.

  2. Violante, a musa das letras bonitas:
    Sua história é tocante. Lindamente escrita, espiritualmente marcante.
    Um primor de história.
    Parabéns, um abração.
    Magnovaldo

    • Obrigada pela gentileza do comentário,
      prezado Magnovaldo Santos!
      Suas palavras me emocionaram..

      A lealdade do cego Genaro ao seu antigo capitão é um exemplo para todos nós.
      No mundo atual, poucas pessoas conhecem esta palavra.

      Grande abraço, e um ótimo final de semana, para você e sua família!

      ..

  3. Bom dia, mulher de lindo nome!

    É vapt vupt!

    Vou, mas retorno brevemente para dar um xêro nessa linda crônica!

    Abraçaço.

    • Bom dia, querido cronista Ciço Tavares!

      Obrigada pela honrosa presença e pelo comentário gentil!

      Grande abraço.

  4. Violante,

    A sua crônica constitui uma prosa poética das mais belas que já tive oportunidade de ler. Lembrei-me imediatamente de Aderaldo Ferreira de Araújo (1878 – 1967), mais conhecido como “Cego Aderaldo”. Ele foi um poeta popular cearense que se destacou por seu raciocínio rápido improvisando rimas e repentes. O cego Aderaldo descobriu o dom da rima em Quixadá, pouco depois de perder a visão em um acidente.
    Aproveito esse espaço democrático do JBF para descrerver um episódio da vida do cego Aderaldo quando passou um tempo na região amazônica.

    A seca de 1915 provocou o esvaziamento dos sertões do Nordeste, em especial do Ceará. Milhares e milhares de homens, mulheres e crianças embarcaram pelo porto de Fortaleza com destino a Manaus e daí para impenetráveis florestas amazônicas. Cego Aderaldo foi um dos cearenses a ir embora, traduzindo em versos, aos os que o escutam a bordo do vapor do Loide, as razões de sua partida:

    Canto para distrair
    Este meu curto poema
    Vou fugindo da miséria
    Que é este o penoso tema
    Desta terra de Alencar
    Deste berço de Iracema.
    Fugi com medo da seca
    Do pesadelo voraz
    Que alarmou todo o sertão
    Da cidade aos arraiás.

    Não foi das mais longas a permanência do Cego Aderaldo no Amazonas, voltando carregado da saudade de sua terra sofrida que não tinha olhos para ver, mas um imenso coração para sentir.

    Desejo um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade

    Aristeu

  5. Obrigada pelo gratificante comentário, prezado Aristeu!

    Fiquei honrada com a correlação que você fez da figura do cego Genaro, personagem principal do meu texto, com o insuperável poeta popular cearense, Aderaldo Ferreira de Araújo (1878 – 1967), mais conhecido como Cego Aderaldo
    .
    Por coincidência, os dois cearenses foram retirantes, e fugiram da seca do Nordeste, de navio, em busca da sobrevivência. O Cego Genaro, por engano foi despachado como retirante para a lavoura do café em São Paulo. Esse equívoco fez com que ele realizasse o sonho de reencontrar seu antigo capitão da campanha do Paraguai..

    Repito seu belíssimo relato, sobre a trajetória de vida do Cedo Aderaldo:

    “A seca de 1915 provocou o esvaziamento dos sertões do Nordeste, em especial do Ceará. Milhares e milhares de homens, mulheres e crianças embarcaram pelo porto de Fortaleza com destino a Manaus e daí para impenetráveis florestas amazônicas. Cego Aderaldo foi um dos cearenses a ir embora, traduzindo em versos, aos os que o escutam a bordo do vapor do Loide, as razões de sua partida:

    Canto para distrair
    Este meu curto poema
    Vou fugindo da miséria
    Que é este o penoso tema
    Desta terra de Alencar
    Deste berço de Iracema.
    Fugi com medo da seca
    Do pesadelo voraz
    Que alarmou todo o sertão
    Da cidade aos arraiás.”.

    Um final de semana pleno de paz, saúde e felicidade para você também!

  6. Belíssima crônica, Violante, onde as palavras reproduzem os sentimentos.

    O Major Bocaiuva com certeza era um homem bom, apesar de ser forçado a ir à guerra matar gente.

    A solidariedade é um dom que muitos poucos possuem, e ele tinha esse dom. A prova disso foi que, quando ele percebeu a necessidade do amigo cego, não teve dúvidas em ajudá-lo.

    Eu faria o mesmo, mesmo se não fosse companheiro de batalha.

    Obrigado pela ótima crônica, Vivi!

    Da sua mente só sai histórias boas e comoventes!

  7. Obrigada pela gentileza de suas palavras, prezado Cícero ou Ciço Tavares!

    Segundo o cego Genaro, o, na época, Capitão Bocaiuva era um pai para os soldados.

    Dai ,sua lealdade e gratidão a essa grande figura humana, de quem fora ordenança, durante cinco anos.

    A lealdade e a solidariedade .são virtudes dificilmente encontradas nos dias atuais.

    O cego Genaro obteve a graça divina de se reencontrar com seu antigo capitão,, e sob seus auspícios foi submetido à cirurgia de catarata., recuperando 100% a visão..

    Um excelente final de semana!..

  8. As crônicas da musa do JBF estão cada vez mais preciosas e emocionantes.
    Saga nordestina, indiferenças, orgulho, altivez, brio, honra, esperança… é o extrato da natureza humana nas belíssimas linhas das cenas do caminho.

    No fim, a fé cumpriu seu nobre papel de colocar as coisas nos seus devidos lugares, com um belo arremate poético Alencarino.

    Deus a abençoe!

  9. Obrigada pela gentileza do comentário, prezado Marcos Cavalcanti!
    Fiquei feliz com suas palavras.

    A lealdade do cego Genaro, defendendo a integridade moral do seu capitão,, diante das maldosas e levianas insinuações do “Tal Major”, foram a gota d’água para que ele obtivesse a graça do reencontro que ele tanto pedia a Deus.

    E deu-se o milagre. O Major Bocaiuva, antigo capitão do cego Genaro na campanha do Paraguai, o amparou e providenciou, sob seus auspícios, a cirurgia de Catarata,, que devolveu as estrelas à sua noite escura…

    .Grande abraço e um ótimo final de semana!
    .

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *