DEU NO JORNAL

Leonardo Coutinho

Os ditadores venezuelanos Nicolás Maduro e Hugo Chávez em evento em Manaus com Lula, em 2007

Um dos primeiros atos da política externa do governo Lula (talvez o primeiro) foi realizado antes mesmo de sua posse. Para atender o desejo de convidar o ditador Nicolás Maduro para a cerimônia que marcou o início do terceiro mandato de Lula, os petistas convenceram o Itamaraty e o Ministério da Justiça a revogar uma portaria de 2019, que proibia o ditador venezuelano e seus colaboradores mais próximos de entrar no Brasil. Naquele ano, os então ministros da Justiça, Sergio Moro, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, baixaram a norma seguindo os exemplos de Argentina, Chile, Colômbia e Panamá.

A decisão de barrar Maduro e seu bando se baseou em resoluções da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) e em declarações do Grupo de Lima, que foi criado em 2017 com a missão de tentar encontrar uma solução para a crise política, institucional, econômica e humanitária da Venezuela.

Para os petistas, se tratava de reverter uma decisão de Jair Bolsonaro que havia se tornado um inconveniente para a vinda de um dos convidados principais. Maduro não apareceu, mas enviou o presidente da Assembleia Nacional, o deputado Jorge Rodriguez, para representar o regime. Rodriguez, por sinal, foi sancionado pelo Tesouro dos Estados em 2018 e era um dos nomes da lista dos membros do regime proibidos de entrar no Brasil.

Maduro herdou o regime fundado por Hugo Chávez e não se constrangeu em mostrar como a Venezuela se transformou em uma ditadura. A tragédia venezuelana se tornou tão explícita, que nem quem se esforçava para fazer vista grossa para os abusos do chavismo conseguiu continuar a fazê-lo. Mesmo com informes cheios de contorcionismos, a ex-presidente do Chile e chefe de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, reconheceu, por mais de uma vez, que o regime liderado por Maduro violava os direitos humanos.

Mas e daí? Maduro ignorou o mundo e, com o suporte da China, Rússia, Turquia e Irã, manteve-se de pé. Prestes a completar dez anos no poder, o ditador soube aguardar pela normalização de seus atos. Ajudado pela crise energética derivada da invasão russa na Ucrânia, que deu músculos ao lobby petroleiro nos Estados Unidos, Maduro tem deixado a condição de pária para se tornar um parceiro repugnante, mas (supostamente) necessário.

A crescente reabilitação de Maduro não significa a anistia de seus crimes ou muito menos a sua absolvição. A lista de violações de Maduro é robusta e está sob investigação na Corte Penal Internacional, o Tribunal de Haia. Diga-se de passagem, é onde são julgados ditadores que cometeram crimes contra humanidade e genocidas.

Mas, para a nova fase da diplomacia brasileira, Maduro voltou a ser um bom companheiro. Um parceiro (supostamente) essencial.

Lula foi eleito prometendo salvar a democracia. Foi e ainda é festejado por isso. Mas a maleabilidade com que Lula, lulistas e assemelhados atribuem ao que chamam de democracia é desconcertante. A tolerância, o suporte e a admiração ao chavismo e seu herdeiro são exemplos da incoerência. Quando criticados, eles recorrem ao fato de que na Venezuela são realizadas eleições. Aliás, talvez nenhum lugar na América Latina ou no mundo todo tenha realizado mais eleições e consultas populares que a Venezuela chavista.

Eleições são superdimensionadas no seu papel como fenômeno democrático. Cuba e Coreia do Norte realizam eleições. E daí? Pensar que democracia se resume a votações é, possivelmente, o equívoco central que é aproveitado por quem quer distorcer o conceito de democracia ou até mesmo desacreditá-la.

Votar é um ato que faz parte da democracia, mas não a resume. Garantias fundamentais como a liberdade de expressão, equilíbrio entre os poderes constituídos, sistemas legais justos e céleres, respeito aos bens públicos e absoluta observância da Constituição são alguns – apenas alguns – dos elementos que ajudam a medir a saúde de uma democracia. Se eles não vão bem, a democracia vai mal.

Ditadores como Vladimir Putin e Xi Jinping sabem muito bem como usar o endeusamento das eleições no Ocidente contra os próprios ocidentais. Em 2016, ao espalhar que havia interferido na eleição dos Estados Unidos, a Rússia – que inegavelmente atuou, mas certamente não na escala e com os resultados que eles fizeram o mundo acreditar – minou a confiança no sistema eleitoral americano. Em 2021, a China se aproveitou da esparrela da campanha de Donald Trump e seus apoiadores sobre fraudes que se mostraram impossíveis de serem comprovadas para vender a tese de que o modelo de democracias que conhecemos não serve e que a “democracia” deles deve ser considerada como opção ou pelo menos aceita como algo normal.

A Venezuela de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro não se transformou no que se transformou da noite para o dia. O chavismo não é um acidente, um milagre ou um assalto sobre a pobre população venezuelana. O regime foi construído. Chávez foi eleito em 1998 em uma eleição limpa. Certamente com problemas, mas de acordo com as regras e sem a roubalheira que depois marcaria cada uma das outras disputas eleitorais que viriam nos anos seguintes. O povo o escolheu para resolver a crise e dar respostas sociais que eram ignoradas pelos seus antecessores. Ele já havia se mostrado um golpista ao tentar agarrar o poder à marra, em um golpe frustrado, seis anos antes. Mas mesmo assim, os venezuelanos deram a ele as chaves do Palácio de Miraflores.

Chávez comprou quem podia. Perseguiu quem não conseguiu comprar. Prendeu. Espancou. Matou. Mas nada disso aconteceu de repente. Muitos ainda insistem em acreditar que golpes são atos instantâneos. Chávez tentou esse modelo antigo e deu errado. Então ele transformou o seu golpismo em um ato diário. A democracia na Venezuela foi morrendo dia após dia. Ano após ano. Ato após ato.

Quando morreu, em março de 2013, Chávez legou a Maduro um país dividido. A crise econômica já ameaçava a estabilidade e as instituições já não existiam para nada além de validar as ações do regime. Maduro veio para sedimentar o estrago, aumentando a intensidade e alcance da tragédia. Coube a ele a cara do ditador. Mas a ditadura que ele herdou estava há tempos em gestação.

A América Latina está repleta de exemplos de autocracias que nasceram disfarçadas de democracia. Nicarágua e Bolívia estão entre aquelas que merecem menção. Voltando à Venezuela, vale lembrar que Chávez lutou contra o fascismo. Pelo menos é o que ele dizia. Prometeu igualdade e justiça social. Teve a mão pesada ao fazer valer o que ele vendia ser justiça, mas nada mais era que justiçamento. Amordaçou os críticos. Fechou TVs, jornais e sites. Quebrou o país. Ejetou do território pela perseguição, fome, violência e toda ordem de tragédia mais de 7 milhões de venezuelanos.

Tudo isso já havia acontecido e era devidamente conhecido, mas, mesmo assim, o PT de Lula se manteve fiel. Em uma nota, atualmente possível de ler apenas em um arquivo digital, o PT manifestou sua felicidade pela vitória do regime em eleições regionais. A nota diz, entre outras barbaridades, que “essa vitória adquire ainda mais importância histórica por ter se dado em meio a uma torpe tentativa de cerco e aniquilamento do país liderada pelo governo estadunidense, império que busca derrotar os povos e nações que lutam por justiça social, inclusão social e autodeterminação”.

Nos últimos anos, uma das perguntas que mais ouvi sobre o tema foi sobre a possibilidade ou não de o Brasil virar uma Venezuela. Eu sempre disse que não. Nunca faltou vontade, mas sempre faltaram as condições. Lula voltou e seremos colocados perante um novo teste de resiliência. A questão agora é saber se os freios que existiram no passado serão capazes de serem acionados. O Brasil já está ladeira abaixo. A questão é saber se conseguirá fazer a curva ou se vai despencar no abismo.

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