MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Duas semanas atrás, eu dei um pitaco sobre o “linhão” que foi construído na região norte para levar eletricidade das usinas de Tucuruí e Belo Monte para o Amazonas e o Amapá, e que pretende chegar a Roraima. Pois não é que uma semana depois acontece uma zica em Macapá e o estado inteiro fica no escuro? Então, deixa eu tirar o meu da reta: A CULPA NÃO É MINHA! Eu só estava mostrando os fatos e dando minha opinião. Então, para quem quiser saber, a história do Amapá é a seguinte:

– Desde 1975 existe a hidroelétrica Coaracy Nunes, que fornecia 48 MW e foi ampliada em 2000 para 78 MW.

– Como isso não era suficiente para abastecer o estado, o restante era fornecido por uma termoelétrica a óleo (cara e poluente) em Macapá e alguns geradores pequenos (também caros e poluentes) nas cidades do interior.

– Já estavam identificados dois locais para construção de hidroelétricas no rio Araguari, além da Coaracy Nunes. Mas por aquelas coisas que acontecem em país pobre, as coisas não saíam do papel. Alguém me disse uma vez que o governo é como uma onça em um milharal: ela não come milho mas não deixa ninguém mais comer. O governo não faz e não deixa ninguém fazer.

– Para dar uma idéia do prejuízo: em 2009 o consumo de óleo diesel para a termoelétrica de Santana era de 18 MILHÕES DE LITROS por mês, ou seiscentos mil litros por dia. O custo desse óleo estava embutido nas contas de luz de todos os brasileiros, através de uma coisa chamada CCC – Conta de Consumo de Combustíveis.

– Em 2011 começaram as obras da segunda usina do Araguari, a hidroelétrica Ferreira Gomes, que ficaria pronta em 2014 com uma potência total de 252 MW.

– Mas com tanta demora, o sistema elétrico do Amapá estava sobrecarregado, com apagões rotineiros, e não dava para esperar a usina ficar pronta.

– Assim, em janeiro de 2012 foi inaugurada, com festa e foguetório, a unidade II da termoelétrica de Santana, que custou 53 milhões de reais e acrescentou 47 MW de capacidade ao sistema; as novas máquinas também eram alimentadas com óleo diesel.

– Apenas dois anos depois, em 2014, ficou pronta a linha 230 kV que interligou o Amapá ao Sistema Integrado Nacional. A termoelétrica não era mais necessária e foi desligada.

– No mesmo ano, entraram em operação as hidroelétricas Ferreira Gomes no rio Araguari e Santo Antônio do Jari no rio Jari. Com isso, o Amapá tornou-se exportador de energia para o restante do país. Em 2016, ficou pronta mais uma hidroelétrica no Araguari, chamada Cachoeira Caldeirão. O Amapá, hoje, produz mais que o dobro da energia que consome; a sobra vai para os estados vizinhos, especialmente o Amazonas (através do famoso linhão).

– Tudo parecia ótimo e maravilhoso, mas ninguém percebeu que o sistema do Amapá estava ligado à rede nacional e às quatro hidroelétricas através de uma única subestação, chamada Macapá II. As coisas ficaram assim por seis anos, até que…

– Em novembro de 2020, um dos três transformadores 230 kV da subestação pegou fogo, e sofreu “perda total”. O incêndio danificou um segundo transformador. O terceiro estava “parado para manutenção” fazia onze meses. Sem esses transformadores, mais de 90% do estado ficou no escuro.

– Cinco dias depois uma operação de emergência conseguiu reparar os danos causados pelo incêndio no segundo transformador, mas ele sozinho não dá conta da demanda. Até hoje, o estado está funcionando em regime de rodízio. A solução completa exigirá transportar um novo transformador (que pesa quase cem toneladas) e deve demorar uns quinze dias.

– Uma pequena observação: as perdas do sistema (a diferença entre a energia que é produzida e aquela que é paga pelos usuários) são de aproximadamente 40%. Ou seja, 40% da energia do estado é perdida através dos famosos “gatos”.

– Embora existam um Ministério, uma Agência Reguladora, uma Eletrobrás e um monte de empresas estaduais, nenhum destes órgãos é responsável pelo planejamento do sistema elétrico brasileiro; para isso existe a EPE – Empresa de Pesquisa Energética (se alguém souber por quê ou para quê, por favor me avise). A resolução nº 25/2020/PR/EPE, de 9 de novembro de 2020 criou um Grupo de Trabalho na EPE para “avaliação de propostas de planejamento que visam ao aumento da segurança de suprimento de energia elétrica ao Estado do Amapá”. Ou seja, parece que a empresa que existe só para planejar nosso sistema elétrico só descobriu agora que o sistema elétrico do Amapá não é seguro.

– Eu tentei bastante descobrir o que aconteceu com a termoelétrica Santana. É verdade que a unidade I já estava “no bagaço”, mas a unidade II foi inaugurada faz apenas oito anos, e só funcionou por dois anos. O que foi feito com as suas máquinas? Por que não estavam em condições de funcionar em uma situação de emergência como essa? Não consegui descobrir. A notícia de sua inauguração aparece até no site do Ministério Público do Amapá, que deve entender muito de energia elétrica. O seu destino depois de 2014, ao contrário, é um mistério. Para imitar o mestre Berto, a usina desapareceu mais rápido que peido de paraquedista.

Então, resumindo: toda a pompa e circunstância do governo federal e suas autarquias planejadoras e regulamentadoras deixaram um estado inteiro dependente de uma única subestação, deixaram um transformador parado por quase um ano e não conseguiram evitar que um incêndio em um transformador atingisse o outro. Isso não é um caso isolado: existem dezenas ou centenas de lugares no Brasil que também dependem de uma única subestação e correm o risco de ficar na mesma situação. Por último, uma termoelétrica que custou 53 milhões e que poderia estar disponível para ajudar em uma emergência como essa, desapareceu.

4 pensou em “JURO QUE NÃO FUI EU !

  1. Prezado Marcelo e demais amigos fubânicos,
    Prometo que é a última vez que escrevo sobre o Amapá, até porque amanhã já estou retornando para Belém do Pará.
    Não tinha como deixar de comentar esse seu texto pois também fiz a mesma associação, do apagão aqui ocorrido, com o seu excelente texto anterior.
    E ademais, também não tinha como deixar de repassar a última notícia corrente.
    O nosso trabalho de campo é no município vizinho, Santana, conurbado à capital Macapá.
    Pois acreditem se quiserem:
    dizem que o atual dono do estado, e que manda mais no Brasil do que o PR, conseguiu adiar as eleições municipais, APENAS EM MACAPÁ, com o argumento do apagão, mas cuja principal razão é o fato do seu irmão, candidato a prefeito, estar despencando nas pesquisas.
    E as eleições em Santana, que está sofrendo tanto quanto Macapá, ESTÃO MANTIDAS!!!
    Pode isso????
    As teorias das conspirações por aqui são várias, e uma das mais fortes diz que a pane no transformador, que gerou o apagão, não foi causada pelo raio, mas…..
    Como diria o SS*, apagado e eletrocutado mas….
    Deixa pra lá.

    * SS (Sábio Sancho)

    • Trata-se de um Bildungsroman…
      Rômulo sabiamente esconde em um “mas” muito “mais” do que possamos imaginar….

      Como diria o SS*, apagado e eletrocutado mas….
      Deixa pra lá.

      Sempre no mais singelo “mas” (contudo, entretanto, todavia) reside muito mais coisas do que sonha nossa vã filosofia…

      Marcelo, como minha mente sempre “viaja” por mares nunca dantes navegado, sou sempre favorável às teorias conpiratórias, pois essa gente maravilhosa que “coluneia” e “comenteia” aqui no jbf possui imaginação fértil demais para acreditar nestes “raios” que caem sobre as “coisas” do Brasil.

      David Copperfield seria brasileiro? Copperfieldico mas…Uma termoelétrica que custou 53 milhões e que poderia estar disponível para ajudar em uma emergência como essa, DESAPARECEU. Tudo tão Brasil…

  2. Marcelo, perfeito.
    Os problemas do Sistema Interligado Nacional não estão na geração e sim na manutenção. Veja só, o Amapá dependia de 3 transformadores; um pegou fogo, outro foi danificado e o terceiro estava esperando manutenção há 11 meses!
    A isso eu chamaria de contingência tripla.
    Não há fornecimento de energia que aguente uma contingência dessas.
    Ninguém se preocupou com o atraso da manutenção porque tinham outros dois transformadores. Mas eles esquecem que defeitos em sistemas de energia elétrica raramente são anunciados e ocorrem em segundos.

    Só um exemplo, um raio que caiu na subestação de Itaberá (Furnas), que recebe os 2 linhões de itaipu, causou um apagão nacional que durou horas. Esses linhões foram construidos em uma faixa com espaçamento tal que se uma torre quebrasse (há muita incidência de ventos fortes no Paraná) não cairia sobre a outra linha. Beleza, mas aí veio um danado de um raio e derrubou o sistema Sudeste-Nordeste. O que resolveu? Manutenção rápida, o que seguramente não preocupou a concessionária do Amapá no caso presente.

    • Francisco, se me lembro bem, após esse caso da linha de Itaipú foi feita uma auditoria em todas as subestações do percurso e constatado que as condições de manutenção eram uma calamidade. Coisa de 3/4 dos equipamentos de proteção em condição duvidosa ou inoperante.

      Se eu encontrar o relatório, coloco aqui.

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