MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Todo povo tem os seus heróis. Heróis de guerra, heróis mitológicos, heróis políticos, o tipo varia. O Brasil não parece gostar de heróis vencedores: prefere os heróis derrotados, os mártires, e gosta dos mitos, em que a fantasia é mais relevante que a realidade.

O herói maior das aulas de Educação Moral e Cívica é Tiradentes, participante (e suposto líder, segundo alguns) de um movimento que acabou antes de começar e sobre o qual não sabemos quase nada, a Inconfidência Mineira. A ausência de documentos e de fontes é útil, permite construir o mito da forma mais conveniente. Na vida real, historiadores parecem concordar que Joaquim José da Silva Xavier era um mero participante entusiasmado da Inconfidência. Quando a monarquia foi substituída pela república, em 1889, Tiradentes era um bom candidato à mártir, e assim foi construído um personagem, que incluía pinturas em que Tiradentes aparece como um sósia de Jesus, de barba longa e túnica branca.

Um segundo mito, quase do mesmo escalão, é Zumbi dos Palmares. Como no caso de Tiradentes, não há nenhum documento confiável sobre ele. Sua história é um conjunto de lendas que se tornaram “fato” após aparecerem em ensaios acadêmicos e livros de escritores importantes. Essa história condensa praticamente todos os clichês que costumam acompanhar os mitos: a origem nobre (Zumbi e seu tio Ganga Zumba seriam descendentes do rei do Congo), a superioridade precoce (Aos vinte anos Zumbi era reconhecido como grande comandante e estrategista militar, além de ser “muito forte” e “excelente guerreiro”), os ideais puros e incorruptíveis (teria assassinado seu tio Ganga Zumba que defendia uma política “pragmática” com Portugal). A história de Zumbi tem um traidor (Antônio Soares), assim como Tiradentes, e um final heróico, resistindo até a morte contra forças muito superiores (as tropas comandadas por Domingos Jorge Velho e Bernardo Vieira de Melo).

Pode-se ter uma boa visão do conceito brasileiro de “herói” na lista oficial: o “Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria”, mantido no Panteão Tancredo Neves em Brasília. Nos primeiros nomes, destacam-se dois tipos: Em primeiro lugar, os políticos, que na visão deles mesmos são sempre merecedores de honrarias. Em segundo, os mártires, aquelas personalidades muito conhecidas mas que pouca gente sabe explicar por quê, exceto pelo fato de terem morrido ou, de preferência, terem sido assassinados. Fazendo companhia a estes, algumas celebridades aleatórias. O livro se inicia justamente com Tiradentes, seguindo com o Marechal Deodoro da Fonseca, Zumbi dos Palmares e D. Pedro I. A lei diz que uma pessoa só pode ser homenageada dez anos após a sua morte, mas nossos deputados ignoram isso e adiantam as indicações: Pelé e Olavo de Carvalho já têm seus nomes tramitando pela burocracia do congresso. Nos nomes já inscritos, existem 15 políticos, 5 militares da Guerra do Paraguai e ao menos 25 mártires, pessoas “famosas por terem morrido”, se me perdoam o cinismo.

Aliás, quem buscar alguma lógica ou coerência no tal livro vai se decepcionar. D. Pedro II está lá, herói da pátria. Deodoro da Fonseca, que liderou um golpe militar que depôs e expulsou do país este herói da pátria? É herói da pátria também. Frei Caneca, executado por liderar a Confederação do Equador? Herói da pátria. D. Pedro I, que mandou executá-lo? Herói da pátria também. Anita Garibaldi, que participou de uma guerra que buscava a independência de uma parte do país? Heroína da Pátria. Duque de Caxias, que lutou do lado oposto? Herói da Pátria também. Para alguém ser herói no Brasil não importa o que fez, o que pensava ou o que defendia: basta ser uma “celebridade” conhecida ou político influente, ou ter carteirinha de “vítima”.

Outra característica forte do “heroísmo” brasileiro é o antagonismo: um bom herói deve ter um bom inimigo. Assim como Tiradentes teve seu Joaquim Silvério dos Reis e Zumbi teve seu Antônio Soares, é difícil achar um fã de Ayrton Senna que não se empolgue ao xingar Nelson Piquet.

Um dos casos mais típicos desse raciocínio envolve Santos Dumont (inscrito no Livro de Aço desde 2006): praticamente todo brasileiro o considera um herói, um gênio, um grande vulto da humanidade. Mas pouquíssimos são capazes de dizer mais de duas sentenças sobre ele sem desviar o assunto para os irmãos Wright e recitar as três ou quatro frases-feitas contra eles que se repetem milhares de vezes pela internet brasileira. Santos Dumont como tema de redação no ENEM seria reprovação certa para quase todos, porque as suas realizações (e são muitas) são ignoradas pela mídia, pelo povo e até mesmo pelas escolas. O que entusiasma, o que inflama o ego do brasileiro é enaltecer o pobre Alberto apenas por aquilo que ele não fez: ser o primeiro a voar em um aparelho mais pesado do que o ar.

Existem casos internacionais, que são aceitos com entusiasmo pelos brasileiros. É o caso de Nikola Tesla, um cientista que combinava erudição e excentricidade em grandes doses. Após uma juventude produtiva, Tesla morreu na miséria depois de passar várias décadas envolvido em idéias cada vez mais confusas e impraticáveis. Após anos de quase esquecimento, foi redescoberto recentemente, mas não por suas boas idéias: Tesla foi declarado “mártir” em oposição a Thomas Edison, empresário e inventor que, a despeito de suas grandes contribuições para a ciência, foi declarado “do mal”. Edison teria “explorado” ou “roubado as idéias” de Tesla, que por isso foi alçado à categoria de herói. É uma tarefa dificílima encontrar um brasileiro que saiba citar corretamente uma só descoberta de Tesla, mas é fácil encontrar quem se refira a ele como o gênio que inventou a roda, descobriu o fogo e colocou anéis em Saturno.

Para uma visão completa desse apego dos brasileiros aos mártires e aos mitos, faltaria observar como isso se reflete na política, mas nessa areia movediça eu não vou pisar. Encerro por aqui.

Um comentário em “HERÓIS, MÁRTIRES E MITOS

  1. A Lista dos Heróis do Panteão Tancredo Neves é polêmica, pois os nomes ali colocado o foram por força política.

    Exemplos: Tiradentes e D. Pedro I. Não foram conterrâneos, porém representam forças políticas distintas.

    Tiradentes, lutou contra a coroa portuguesa por conta de um imposto de 20% que era aplicado ao ouro brasileiro. Era um libertário, queria um país ao modo dos EUA que acabara de se apartar da Inglaterra (era maçom), porém nem ele nem seus companheiros de empreitada não tinham um projeto de Brasil.

    J. Bonifácio (maior nome brasileiro a meu ver) foi o principal artífice da nossa independência, junto da Imperatriz Leopoldina, porém ela não está no portal. Seria por ser uma Habsburgo? Misoginia?

    Assim vai. Brizola, Tancredo, Zuzu Angel, Arraes, Juscelino, Ulysses, Nelson Carneiro (herói do divórcio?), Jaime Writght (nunca ouvi falar). Tudo por política.

    Enquanto isso, Sobral Pinto, R. Campos, os pracinhas da FEB, só para citar mais 3 exemplos (já foi a Leopoldina) ficam de fora.

    Não é a toa que o BR nunca ganhou um Nobel. Não valoriza seus verdadeiros expoentes.

    Eu ignoro esta lista e acho que os brasileiros deveriam fazer o mesmo.

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