MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Talvez muita gente não perceba, mas a historinha acima está brincando com uma idéia que alguns políticos e intelectuais levam muito a sério: um negócio chamado “contrato social”. A expressão foi criada por Rousseau no século 18, mas o conceito sempre rodeou o discurso dos estatistas. Já esteve mais na moda, mas ainda reaparece de vez em quando; na semana passada a Folha de São Paulo achou necessário relembrar o conceito, em um artigo que dizia que “imposto faz parte de um pacto social”, que cada um “abre mão de uma liberdade para viver melhor em coletividade”, e deu estes belos exemplos: “você abre mão de parte de sua renda para ter polícia, banco central, sistema judiciário, transferência de renda para os menos afortunados, hospital público, exército, escola pública, monitoramento florestal, pesquisa universitária básica”. Sem querer analisar cada um, é o caso de perguntar porque é necessário obrigar as pessoas a pagar por isso; se são coisas tão maravilhosas, as pessoas não pagariam voluntariamente?

Uma das características que distingue o ser humano dos outros animais é a fala, a capacidade de se expressar. Para que essa capacidade de expressão funcione, é preciso que a sociedade tenha uma linguagem comum. Para o poder, essa capacidade pode ser inconveniente, e pode ser mais conveniente que aqueles que não fazem parte do poder fiquem mais próximos dos demais animais, incapazes de se expressar – no linguajar moderno, “gado”. A idéia de manipular a linguagem para controlar o pensamento aparece no famoso “1984” de George Orwell e é citada por diversos filósofos.

Na prática, a pessoa que é obrigada, sob ameaça de prisão, a pagar impostos é chamada de “contribuinte”. Quando o contribuinte, após ser obrigado a entregar parte do que ganha durante décadas, chega à idade de se aposentar, o governo chama issso de “conceder um benefício”. Quando um cidadão tenta exercer seu direito fundamental de trabalhar, é obrigado a pedir ao governo um sem-fim de licenças e alvarás, e na maioria deles vêm escrito “O Exmo. Sr. Secretário resolve conceder…”, como se fosse um grande favor.

O tal do contrato social é apenas mais uma dessas manipulações da linguagem que, de tão numerosas e tão usuais, já nem são notadas. Serve apenas como um obstáculo útil para interromper o debate mais importante, que é o da relação de poder entre estado e povo. Quando um defensor do estado fica sem resposta, recorre à falácia do contrato que ninguém assinou.

Qualquer dicionário mostra que um contrato é “um acordo voluntário entre duas partes”. O contrato social não é voluntário.

Um contrato estabelece obrigações para ambas as partes e prevê consequências em caso de descumprimento. O contrato social prevê obrigações para um lado e promessas e boas intenções para o outro lado.

Um contrato só pode ser alterado mediante o consentimento de ambas as partes. O contrato social é reescrito diariamente pelos milhares de políticos e funcionários do estado, sempre em seu próprio benefício.

Um contrato pode ser encerrado por qualquer uma das partes, mediante condições previamente estabelecidas. O poder usa o contrato social como uma prisão da qual ninguém deve poder escapar.

Aldous Huxley, no prefácio de seu livro “Admirável Mundo Novo“, fez (em 1946!) a seguinte profecia:

“Um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos e os administradores controlassem uma população de escravos que não precisariam ser coagidos, porque amariam a escravidão. Fazer o povo amar a escravidão é a tarefa, hoje, dos ministérios, diretores de jornais e professores.”

Ministérios, diretores de jornais e professores. Em outras palavras, o governo, a imprensa e a escola. São eles que se dedicam à tarefa de fazer o povo amar a escravidão, temer a liberdade, suplicar por ordens e regulamentos, e de forma geral odiar qualquer um que cometa a heresia de pensar por si mesmo. São eles os executores do plano de levar-nos ao Admirável Mundo Novo. Já são muitos os seus apoiadores, que dizem que o bom cidadão respeita o “contrato social”: repete o que ouve mas não pensa, apoia o que a maioria apoia e sempre, sempre, obedece sem questionar.

4 pensou em “EU NÃO ASSINEI O CONTRATO SOCIAL

  1. Por essas (e outras parecidas) Voltaire afirmou que acompanhar o “raciocínio” de J.J.Rousseau equivalia a voltar de andar de quatro.
    Parece que nada mudou…

  2. Obrigado Marcelo, por ter “abrido minha caxola” com este maravilhoso e elucidativo texto. Sabemos, conhecemos e vivemos este fictíssimo “contrato social” e bovinamente cumprimos nossa parte e não fazemos nada.

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