Roberto Motta
Imagine uma religião que prega castidade, virtude e temperança, mas cujos líderes são promíscuos, violentos e corruptos. Essa religião teria poucos adeptos, pois o contraste entre doutrina e prática mostraria que seus ensinamentos são palavras vazias. Agora falemos de constituições brasileiras.
O Brasil já teve muitas constituições. A atual, escrita em 1988, é a sétima. É importante refletir sobre isso. Imaginem um advogado constitucionalista que viveu no período da primeira Constituição, entre 1824 e 1889. Essa foi a constituição que mais durou em nossa história: 65 anos. Muitos a consideram a melhor constituição que já tivemos. Um advogado constitucionalista daquele período certamente teria orgulho dela. Imaginem, então, o que esse advogado deve ter sentido quando a república foi proclamada e uma nova constituição imposta ao país. Ele talvez tenha pensado: estamos perdidos. Um país que muda sua Constituição uma vez certamente a mudará de novo. Se nada havia de sagrado na primeira, não haverá nada na segunda, na terceira e nem na sétima. Isso não é pessimismo ou exagero; é simples lógica.
Essa discussão ilumina até mesmo a questão das chamadas cláusulas pétreas, pontos da constituição que não podem, segundo os especialistas, ser alterados em hipótese nenhuma. Ora, se a própria Constituição pode ser inteiramente substituída por outra, as cláusulas pétreas são tudo, menos permanentes.
Quase todos os dias ouvimos autoridades discursando sobre a sacralidade do texto constitucional. Mas o texto da constituição de 1988 já sofreu mais de 130 emendas e ninguém sabe quantas outras ainda serão aprovadas até que a Constituição seja substituída por outra. Medidas que em outros países são determinadas por simples portarias administrativas, ou mesmo através de lei, no Brasil são transformadas em emendas constitucionais. É evidente que há incompatibilidade entre a ideia da Constituição como um texto sagrado e a facilidade com a qual ela é emendada.
Desrespeito à Constituição é uma tradição nacional. O primeiro presidente do Brasil, Marechal Deodoro, desrespeitou a Constituição. O segundo presidente, Floriano Peixoto, também. Getúlio Vargas violou a Constituição dando um golpe de Estado em 1930. Depois fez, ele próprio, duas constituições: uma em 1934 e outra em 1937, quando inaugurou sua ditadura tupiniquim de sabor fascista-sindical, o Estado Novo. A frase “às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência” foi pronunciada por um ministro, durante a reunião de 13 de dezembro de 1968 que aprovou a decretação do AI-5. Essa frase poderia ser o slogan do constitucionalismo à brasileira: às favas a Constituição, qualquer que seja ela.
A novidade do momento não é o desrespeito à Constituição. A novidade é a origem do desrespeito e o cinismo com o qual esse desrespeito é apresentado como se fosse fidelidade.
A verdade é que constituições são simples textos, sem qualquer poder sobrenatural. O país que pode ser considerado o berço das liberdades civis, o Reino Unido, nunca teve uma Constituição escrita. O país da Magna Carta, da Revolução Gloriosa, de John Locke e Edmund Burke, nunca precisou de um documento escrito para orientar seus políticos e seu povo. Uma Constituição é tão boa quanto as instituições da nação que a criou – e o termo instituições é usado aqui com o significado dado pelo economista Douglas North: instituições são as regras que regem o jogo social, o que inclui não só o arcabouço jurídico, mas os hábitos, costumes e tradições. Mesmo a Constituição Americana – apenas quatro páginas escritas em pergaminho – pouco teria significado sem a disposição dos líderes e do povo de criar uma nação baseada no respeito aos direitos fundamentais, na divisão do poder do Estado e no repúdio à tirania.
A verdadeira Constituição está na cabeça dos cidadãos.
Portanto, esqueçam as frases empoladas, frequentemente confusas, daquele documento produzido em 1988 por um grupo de sonhadores ingênuos misturados com ideólogos radicais. Esqueçam a Constituição. O que vai determinar a viabilidade da nação brasileira são a cultura do povo e a qualidade dos políticos. Cultura, segundo Geert Hofstede, é o conjunto dos hábitos, costumes e tradições que guiam nossa vida. Se somos um país de malandros, que valoriza a ociosidade e a esperteza, e demoniza o trabalho e a prosperidade, nenhuma Constituição vai nos salvar. O que constrói ou destrói um país são as atitudes e o comportamento do dia a dia: o repúdio à injustiça, a distinção entre certo e errado e a valorização do mérito, da responsabilidade e da prosperidade. Não haverá Brasil sem a disposição de afirmar nossos direitos diante de um Estado faminto, autoritário e corrupto, cada vez mais capturado por interesses escusos.
No dia em que decidirmos ser uma grande nação ninguém vai nos segurar. A Constituição – a sétima, décima terceira ou vigésima – será um mero detalhe.
Brilhante, Sr Roberto Motta ! Estou seguindo a pessoa certa . Porem, o Sr nos fez ver que já não estamos mais à beira do precipício . Nós já caímos . Estamos no fundo do buraco . Abraço.
Concordo em gênero, número e grau. Protestar sem agir, é nada. Os gaúchos do agronegócio concluíram isso. Precisamos agir, sem esperar pelas ações do Estado.