ROQUE NUNES – AI, QUE PREGUIÇA!

Esta semana, nossa colega de confraria, a Renata Duarte me mandou um vídeo falando que pobre não tinha paz, nem na hora de ser enterrado. Nessas horas, cabeça de caeté vazia é oficina para o anhangá fazer as suas estripulias. Fiquei pensando no que ela me disse sobre paz em enterro de pobre. E a pergunta que me veio é: pra quê? E nesse pensar fui vendo como enterro de pobre é um espetáculo à parte.

Enterro de pobre já começa pelo piseiro que se faz no hospital, ou no necrotério onde o boneco está. É muito fácil identificar morte de pobre. A presepada já começa no portão, antes mesmo de se reconhecer o presunto. A tia gorda que resolve desmaiar e só tem uns desmilinguidos, todos tremidos de maleita, para ampará-la. Vão todos para o chão…., a providência da documentação, a liberação do corpo, os preparativos para o velório, a pechincha com o papa defunto, afinal, morrer está caro hoje em dia. Está mais fácil a gente virar estátua de sal do que morrer. Passada essa fase é a vez do velório.

Geralmente ocorre na casa do pobre, já que não se preparam pagando um plano funerário para essas horas. Velório em casa de pobre é um espetáculo por si só. Se o defunto for homem, já viu. Os primeiros a aparecerem são os amigos do boteco. E não veem sóbrios, não, porque amigo botequeiro só vai em velório de botequeiro com o quengo cheio. Além disso, levam umas duas, ou três garrafas de cachaça – não cerveja – para acompanharem o caminho do extinto para a presença do Padre Eterno.

Aí chega a vez das raparigas, dos xibungos e dos cornos que o conheciam. É um xororô, um cafungar, um falar mole e aquele fartum de loção pós barba e perfume doce típico de puteiro. Mas tudo faz parte da dinâmica de prestar homenagem àquele que um dia foi companheiro de copo, amigo das andanças trôpegas pelo bairro.

A família é um caso à parte. Aliás, pode-se até fazer um estudo antropológico entre o enterro de pobre e o enterro de rico relacionado à família. No enterro de rico se perfilam de um lado os familiares do morto, do outro, os familiares da viúva, ou viúvo, entre eles várias coroas de flores encaminhadas por amigos, parentes, companheiros de trabalho, chefia, etc. O choro é quase imperceptível. Quando muito, as mulheres estão com chapéu preto, véu e uma televisão de setenta polegadas na cara fazendo de anteparo de óculos. De vez em quando, levantam esses óculos – de marca caríssima, mas vendida a quinze reaus (em caeté popular) em um camelô qualquer -, enxugam uma furtiva lágrima com o lenço e segue todo mundo em silêncio contrito. Até os pêsames é dito baixinho, quase ninguém ouvindo, nem mesmo aquele que o recebeu.

No enterro de pobre o carnaval já começa no portão de entrada. É uma gritaria de “Ai, meu Deus”, “Ai, Jesus!”…. e por aí vai. É gente sapateando, pulando ao lado do caixão, derrubando as velas, atropelando os cachacistas que foram se despedir do amigo, tia gorda desmaiando, tia velha caindo da cadeira de “prástico” que foi emprestada da vizinhança, duas raparigas brigando por causa de um cigarro, xibungo contando piada escabrosa e rindo às gargalhadas diante do morto e, para coroar o velório, dois vira-latas rosnando para quem chega.

Com o caminhar do velório, a coisa vai se arrefecendo, até chegar os sobrinhos, e os amigos dos sobrinhos que veem da escola, dispensados por causa do passamento do parente. A primeira coisa que fazem, antes mesmo de ir ver o boneco é pedir a senha do wi-fi, afinal, velório sem postagem nas redes sociais, não é velório. E, ainda há aqueles que resolvem fazer as ditas selfies, fazendo aquele V com os dedos – sei lá que porra isso significa – colocando o focinho bem rente ao morto, ou então mostrando a língua sobre o caixão.

É de praxe, é de lei. E o tempo todo um cafezinho correndo entre os convidados, digo, entre os amigos que foram prestar homenagem ao morto. Aí aparece o grupo de carpideiras e as beatas que vão “puxar” um terço em prol da alma do finado. Os manguaças que foram se despedir do amigo ficam igual a mamoeiro em dia de ventania… pra lá e pra cá…tentando se aguentar em pé, enquanto aquela latomia igrejista corre solta.

E, chega a hora do enterro. O féretro de pobre segue nessa ordem: o rabecão, um fusca, dois brasílias, uma caravan, uma Toyota bandeirante e fechando a rosca, ô glória, um ônibus lotado de crianças, mulheres e bêbados. Em frente ao campo santo são, justamente, os amigos cachacistas que resolvem levar o defunto para a sua última morada. E vão… trôpegos, fungando, ameaçando derrubar o corpo pelas ameias do cemitério.

Nessa hora, um bom observador pode ver que, apesar da morte nos nivelar, enterro de pobre tem características que nenhum outro enterro tem. A primeira coisa que se observa é a presença de um pipoqueiro na porta do cemitério e um cheiro de churrasquinho de gato ao lado. Parece que essa gente consegue farejar quando é enterro de pobre e quando é enterro de rico. No de rico, nem passam perto. No de pobre, fazem até promoção.

Aí Benedito, o show começa. A mulherada gritando que quer ser enterrada junta, que quer morrer junto com o extinto. E não fazem isso de maneia discreta: duas quadras antes de se chegar ao cemitério já se ouve esse panavueiro. É cachaceiro que caiu na cova aberta ao lado, tia que tropeçou em um calhau e se estabacou no chão, criança chorando, toda cagada, porque a mãe a esqueceu e foi colher flores em outras sepulturas. Moleques brincando de pique esconde entre as demais campas, parente perguntando como foi que ele morreu, padre, quando tem, tentando dar a benção para a viagem dos sete palmos.

Então os amigos cachaceiros resolvem discursar à meia boca da cova, enquanto os coveiros, já putos da vida porque tem outro carreto chegando. E tome-lhe louvar as qualidades do morto. Depois vem a canção. Preferencialmente a música preferida do morto, quando em vida. Aparecem então dois cachorros e começam a brigar ao lado da sepultura. Aliás, vocês já perceberem que, em todo enterro de pobre sempre aparece, ou cachorro, ou gato e saem no braço entre eles.

Findo o exercício piedoso, cada um sai de mansinho, dando uma olhada para trás e sentindo um arrepio no “espinhaço”, sabendo que a inexorável, a tinhosa, a impiedosa mão ossuda da morte é uma realidade de todos. Findo esse dia, só resta o soluço de uma mãe saudosa que perdeu o seu filho.

4 pensou em “ENTERRO DE POBRE

  1. Roque, seu iluminado caeté, suas crônicas são perfeitas.
    Quando você tiver tempo, pode fazer uma delas sobre entêrro de político? Não se esqueça de incluir o que vai no epitáfio.
    Parabéns pelo delicioso texto.

    • Magnovaldo, meu caro amigo… já está na lavra… de formão e cinzel nas mãos para esse acepipe carnavalesco que quero fazer com nossas distintas “otoridades”.

  2. Magnífico texto, Roque Nunes!

    O mestre transforma a trajetória dum enterro de defunto pobre num epitáfio alegórico.

    Enterro de pobre é uma festa mesmo. Quanto mais lá dentro das brenhas mais se sente o clamor desesperado da esposa (o), filhos (geralmente muito), de irmãos, cunhados, pais ou mãe (se houver vivos).

    O choro é a festa da partida sem volta.

    Parabéns pelo texto.

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