MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

Escrevo no dia 23 de março de 2025. Nesta manhã de muitas nuvens no céu de Brasília, acordei relativamente cedo para um domingo e fiz o que milhões de pessoas fazem no mundo inteiro: verifiquei mensagens e novidades das redes sociais no celular.

Mal havia começado a rolar a timeline do Twitter (que ainda não me acostumei a chamar de X) quando me deparei com uma postagem do famoso Joaquim Teixeira, fazendo um comentário elogioso sobre a música “My Mistake”, dos Pholhas (os leitores que são jovens há mais tempo certamente conhecem bem a banda paulista que fez sucesso nos anos 1970, tocando canções em inglês).

No vídeo, as legendas chamavam a atenção para a trágica letra da canção. Um lamento que em nada combina com as circunstâncias nas quais tanta gente a ouviu, às vezes dançando “de rosto colado”, nas baladas românticas da adolescência. A certa altura, diz a letra:

Eu fui mandado para a prisão (I was sent to prison)
Por ter assassinado minha esposa (For having murdered my wife)
Porque ela estava saindo com outro (Because she was living with him)
Eu perdi a cabeça e atirei nela (I lost my head and shot her)

É incrível que uma canção com essa letra tenha servido de trilha sonora para tantos romances juvenis! Mas quem prestava atenção a isso naquele tempo?
Hoje, ao ouvi-la, pensei em algo que jamais havia pensado antes: o fato de “My Mistake” fazer parte do primeiro LP dos Pholhas, “Dead Faces”, lançado em 1973, ou seja, apenas alguns anos depois que Jimi Hendrix gravou a versão mais conhecida da música “Hey Joe” (1966).

E o que uma coisa tem a ver com a outra?

Tem a ver que, enquanto “My Mistake” conta a história de um homem que está cumprindo pena, por um crime passional, a letra de “Hey Joe” consiste em um diálogo, durante o qual um dos personagens, também um homem que se diz traído, atenta igualmente contra a vida da mulher:

– Ei, Joe, aonde você vai com essa arma na mão? Ei, Joe, eu perguntei aonde você vai com essa arma na mão? (Hey Joe, where you goin’ with that gun in your hand? Hey Joe, I said, where you goin’ with that gun in your hand?)

– Eu vou atirar na minha mulher. Porque eu a peguei transando com outro homem. O que não é nada bom! (I’m goin’ down to shoot my old lady. You know I caught her messin’ ‘round with another man. Huh, and that ain’t too cool)

– Ei, Joe, eu ouvi você atirar na sua mulher! Você atirou nela! É, atirou! (Hey Joe, I heard you shot your woman down. You shot her down, down)

– Sim, eu atirei nela. Eu a peguei transando. Transando por aí. (Yes, I did, I shot her. You know I caught her messin’ ‘round. Messin’ ‘round town)

Sem dúvida, não seria nenhuma surpresa se viéssemos a saber que Hélio Santisteban teria se inspirado em “Hey Joe” para compor “My Mistake”, como uma espécie de segunda parte da história.

A relação de continuidade entre os dois enredos é plenamente viável, mesmo se considerando que, embora o personagem de “My Mistake” afirme ter sido condenado por assassinar a esposa (For having murdered my wife), o Joe de Jimi Hendrix não confessa diretamente a morte, dizendo apenas: “E eu apontei a arma para ela e atirei” (And I gave her the gun and I shot her).

É o outro personagem da trama quem diz:

– Você abateu ela, sim! (You shot her down to the ground, yeah!)

Na verdade, não é de admirar que, ao descrever sua conduta, o autor do delito o faça por meio da expressão “Eu atirei”, em vez de “Eu a matei”. Desse modo, ele evita confessar – eventualmente até para si mesmo – que tinha a intenção de matar, por mais óbvia que seja a intenção de quem aponta uma arma de fogo para alguém e aciona o gatilho.

Isso não impede, porém, que ele tenha receio de ser condenado, o que fica claro na seguinte fala do personagem:

– Nenhum carrasco vai colocar uma corda no meu pescoço. (Ain’t no hangman gonna he ain’t gonna put a rope around me).

Além disso, em ambas as canções essa resistência em confessar a intenção de praticar o crime vem seguida de uma tentativa de justificar a sua ação criminosa, alegando que o ato teria sido uma reação ao fato de ter sido traído.

Comportamento previsível de alguém que cometeu um ato que gera repúdio social: negar o próprio ato, ao mesmo tempo que tenta atribuir à vítima a culpa por ele. É como se o autor do crime dissesse: “Atirei, mas não estava pensando em matá-la. Atirei, apenas em reação à ofensa causada pela traição”.

No passado, essa desculpa foi amplamente usada em tribunais, com a tese que ficou conhecida como “legítima defesa da honra”. O caso mais famoso no Brasil, envolvendo essa tese, foi o do assassinato de Ângela Diniz pelo marido, o empresário Doca Street, em 1976. Em 1979, ele chegou a ser condenado pelo homicídio da esposa a apenas dois anos de prisão. Em 1981, em novo júri, a condenação foi fixada em 15 anos.

O julgamento gerou ampla repercussão no meio jurídico, mas só em agosto de 2023 a tese da “legítima defesa da honra” seria banida das defesas criminais no Brasil, com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779/DF. A tese da “defesa da honra” foi assim excluída “do âmbito do instituto da legítima defesa”, podendo gerar a nulidade do julgamento no qual venha a ser alegada.

Voltando às canções, dá um certo conforto imaginar que “My Mistake” possa ser a continuação de “Hey Joe”. Apesar de em “Hey Joe” o personagem dizer que fugiria para o México (I’m goin’ way down south. Way down to Mexico way), em “My Mistake” ele acaba preso e condenado, como narra o aqui já referido verso “Eu fui mandado para a prisão (I was sent to prison)”.

Embora seja uma história triste, pelo menos o autor do crime não ficaria impune. Ao contrário, o cumprimento da pena o teria levado a refletir sobre seus atos, reconhecendo seu erro e prometendo uma reforma pessoal:

– Esta foi minha história no passado. E eu vou me reformar. Eu estou pagando pelo meu erro. E jamais serei o mesmo homem novamente. (This was my story in the past. And I’ll go to reform myself. I am paying for my mistake. I will never be the same man again).

Eis aí um aspecto importante do Direito Penal: levar o indivíduo que comete o crime a se arrepender dos seus atos, tomando a decisão de não mais cometê-los. Como também é importante para desestimular outras pessoas a cometerem os mesmos crimes.

Penso que a sanção penal deve sempre considerar esses dois aspectos, para evitar que o sentimento de impunidade seja difundido na sociedade. Muita gente que estuda o assunto fala em ressocialização do condenado, mas, particularmente, penso que essa desejada ressocialização, quando ocorre, é como consequência de uma reforma pessoal, como diz a música, não por uma ação específica do Estado.

Evidentemente que nem a reforma pessoal, nem tampouco a ressocialização, são possíveis no caso da pena de morte, também referida pelo personagem de “Hey Joe”. Por isso não a vejo com bons olhos, embora reconheça que há bons argumentos a favor dela.

O que mais importa, ao meu sentir, é que haja equilíbrio, evitando-se tanto penas irrisórias como cruéis, buscando-se a proporcionalidade entre crime e castigo (Viva, Dostoiévski!).

Como ensina Cesare Beccaria, no seu clássico “Dos Delitos e Das Penas”, “os meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem, pois, ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais comum. Deve. pois, haver uma proporção entre os delitos e as penas”. E completa: “Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos”.

Partindo para o fechamento do texto, rio de mim mesmo ao constatar que uma simples canção (em um post do Joaquim Teixeira) me arrastou para todas essas reflexões.

Como já passa do meio-dia, só me resta citar outra canção, sobre a qual não devo entrar em detalhes agora: “Na hora do almoço”, de Antônio Carlos Belchior.

Seguem os vídeos legendados de “Hey Joe” e “My Mistake”.

4 pensou em “DUAS CANÇÕES E UM CRIME

  1. Pois é excelência, a inspiração para reflexões pode vir de qualquer fonte.

    Este é um tema extremamente importante, pois afeta fortemente a sociedade. Permita dar meu pitaco.

    Concordo que a ressocialização seja uma responsabilidade do indivíduo, e não uma obrigação do Estado. Inclusive em nossa realidade o Estado falava miseravelmente nesta obrigação. É uma utopia.

    Para piorar, a dita ressocialização serve de desculpa para todo tipo de benefício para criminosos, como progressão de regime e as famigeradas saidinhas, que só servem para estimular o cometimento de mais crimes.

    Para mim, a pena só deveria ter duas naturezas: retributiva (punição) e pedagógica, (desestimular novos crimes e dar satisfação à sociedade)

    Um abraço.

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