PEDRO MALTA - REPENTES, MOTES E GLOSAS

Enoque Ferreira Leite glosando o mote:

Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

A cancela se desgasta
Arreia a parte da frente
Abrindo diariamente
Toda cancela se gasta
Devido a terra que arrasta
Não encosta no mourão
Se não botarem um cambão
Termina o gado saindo
Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

Cancela é só uma grade
Na posição vertical
Gira na horizontal
De um círculo faz a metade
E a força da gravidade
Não diminui a pressão
Até que as cunhas da mão
Vão afrouxando e caindo
Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

Fica ruim de abrir
Muito pior de fechar
Que é preciso levantar
Vendo a hora ela cair
Uma trave escapulir
Arriscado um machucão
Somente por precisão
Ela ainda está servindo
Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

Pra quem precisa passar
Pra entrar ou pra sair
Tem que puxar para abrir
Tem que empurrar pra fechar
Cada volta que ela dá
Vai de terra uma porção
Uns lhe fecham e outros não
Ainda o dono pedindo
Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

Quando começa a afrouxar
Cada trave em cada mecha
Se fecha, fica uma brecha
Que dá pra o bicho passar
Para abrir é devagar
Diminui a rotação
Só fecha no empurrão
Pesada mole e rangindo
Cancela velha se abrindo
Faz meia lua no chão.

* * *

Antônio Carneiro glosando o mote:

Encontrei um pedaço de saudade
No terreno da casa que morei.

Regressei ao lugar que fui criado
Como quem vai cumprir um juramento
Avistei os arreios do jumento
Pendurados na cerca do cercado.
No curral que papai trancava o gado
O chocalho da vaca eu procurei
Bem ao lado da casa encontrei
Os resquícios da minha mocidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Avistei o meu cabo de enxada
Encabando uma velha Tramontina
A ferrugem comendo a lamparina
E uma cela de couro empoeirada.
Mas chorei quando vi uma latada
E o cavalo de pau que eu montei
No cavalo da História disparei
Retornei aos quarenta de idade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Encontrei bem no “pé” do casarão
O meu carro de flandre na poeira
Adentrando avistei uma roqueira
Dos folguedos de noite de São João.
Vi meu rádio de pilha campeão
Meu cachorro de caça não achei
Mas a cama velhinha que deitei
Inda mora comigo na cidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Vi pedaços de bola canarinho
Enganchados em cima do telhado
Vi um saco de estopa amarelado
Que a galinha de mãe fazia ninho.
A “camisa” bonita do meu pinho
Que nas noites de lua dedilhei
O balanço que um dia despenquei
Lembrarei para toda eternidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Na “sapata” da casa eu vi salina
Vi “bezerros” de osso no oitão
Vi pegadas de gado pelo chão
Num aceiro a carcaça da turina.
Recordei de uma tarde de neblina
Da arapuca no mato que armei
Quando vi a chinela que calcei
Relembrei toda minha castidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

No oitão também vi uma balança
Onde a pedra de quilo era o peso
Um arame farpado que era teso
Uma estaca apontada como lança.
O sapato que eu ia numa dança
O sabugo de milho que usei
Pra fazer o chiqueiro que criei
Pra prender toda aquela liberdade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

A gamela que pai tomou um banho
O cacete assassino de uma rês
Algaroba, um angico, dois ipês
Que serviam de sombra pro rebanho.
Vi um prato branquinho de estanho
A rural de madeira que ganhei
Vi o cinto de pai que apanhei
Com requinte de pura crueldade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

A cumbuca de mãe guardar azeite
Enxerguei pendurada no pereiro
Avistei lá em cima do chiqueiro
A caneca que pai tirava leite.
A cabeça de vaca como enfeite
Que um dia na cerca enganchei
Vi um banco velhinho que sentei
E o cupim só deixou uma metade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Encontrei um pedaço de cocão
Uma mesa de carro sem fueiro
Uma roda, tarugo e um tamueiro
Do transporte mais belo do Sertão.
Uma tira de pano e um botão
Uma agulha de saco que comprei
E a Monark que tanto pedalei
Eu garanto de vê-la ter vontade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Uma tampa de vinho indiano
Com o rótulo do índio Jurubeba
O cotoco do rabo de um peba
A moldura do nosso Soberano.
Uma quarta da peça de um pano
Que num ano de safra eu comprei
E uma braça de terra que enterrei
As agruras da minha enfermidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

A cangalha surrada do jerico
Pendurada no torno da parede
Candeeiro, pavio e uma rede
Um machado, uma foice, um maçarico.
Um martelo, uma mala e um pinico
Um gibão que um dia campeei
No cavalo rudado que esporei
Cavalgando a procura da verdade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

Caco velho que mãe torrava massa
Caldeirão pra botar milho de molho
Uma lasca de lenha e um ferrolho
Chaminé, um isqueiro, uma cabaça.
A garrafa verdinha de cachaça
Que papai dava trago, não traguei
Eu pensando em voltar inda pisei
Numa foto da minha identidade
Encontrei um pedaço de saudade
No terreiro da casa que morei.

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