“Farmácias reagem contra venda de remédios sem receita em mercados”
“Associação critica proposta que muda pagamento de vale-refeição e alimentação”
As duas manchetes acima foram publicadas no mesmo site de notícias. São duas áreas diferentes, mas mostram o mesmo raciocínio: protecionismo, reserva de mercado, regulamentação, lobby.
O primeiro caso fala da venda de remédios que não precisam de receita médica, como aspirina e xaropes para tosse. Se não precisam de receita, é óbvio que sua venda é livre, mas as farmácias querem o monopólio. Os argumentos, claro, são a “proteção ao consumidor” e algumas falácias argumentativas. O diretor da associação de classe das farmácias disse que “As peças que lançamos nas redes sociais reforçam que a saúde dos brasileiros não pode ser cuidada pela ‘vendinha da esquina’. Os medicamentos precisam ser acompanhados da orientação de um profissional.” Notem a facilidade com que pessoas assim falam em “precisar” quando se trata dos outros. As farmácias continuarão vendendo estes produtos, claro, e quem quiser consultar um farmacêutico antes de comprar, basta comprar em uma. Mas a palavra “querem” não soa tão bonito para eles quanto “devem”, “precisam” ou “são obrigados a”.
O diretor também diz: “Um monitoramento da Abrafarma aponta que ao menos 2.670 itens são mais caros nesses estabelecimentos do que nas farmácias, entre eles antissépticos bucais, escovas de dente e desodorantes. Por que supermercados e similares venderiam medicamentos mais barato do que as farmácias se vendem mais caro nas diversas categorias concorrentes? Além disso, os supermercados são o grande vilão da inflação que vivemos no Brasil, atualmente, escalando preços de alimentos e outros produtos de forma alarmante. Não satisfeitos, agora se voltam para desestabilizar os preços de medicamentos. Valorizamos a liberdade de mercado, mas jamais às custas da fragilização do sistema sanitário.” Ou seja, o diretor diz que seus concorrentes são “o grande vilão”, garante que eles vão cobrar mais caro, mas ao mesmo tempo os acusa de “desestabilizar os preços”, o que não faz sentido nenhum. Para encerrar, vem o obrigatório “valorizamos a liberdade de mercado, MAS…”.
A outra notícia fala de um projeto de lei que permite aos empregadores pagar auxílio refeição e auxílio alimentação em dinheiro, ao invés de usar os famosos cartões. É outro caso que parece óbvio; afinal, se o dinheiro é do trabalhador, porque uma empresa que não tem nada a ver com a história deve ter o direito garantido de lucrar às custas dos outros? Também é óbvio que o lobby destas empresas vai pedir ajuda à imprensa para divulgar suas falácias: “O presidente do conselho da ABBT afirmou que a medida provocaria o encolhimento do mercado de vouchers no Brasil, além de comprometer o faturamento de bares, restaurantes e mercados, pois os trabalhadores poderiam usar os valores do benefício para pagar outras contas. Em pesquisa feita pela associação, com 3,5 mil pessoas, 68% dos entrevistados dizem que não usariam o valor do benefício para alimentação se passassem a recebê-lo em dinheiro. A pesquisa mostra que, se as pessoas recebessem o recurso do vale-refeição em espécie, usariam para pagar contas, para cobrir o cheque especial, para comprar recarga de celular e para entretenimento.”
Que horror, pessoas adultas decidindo o que fazer com o seu próprio dinheiro. Não é segredo que para muitos “intelectuais” e “especialistas”, o caminho deveria ser o inverso: o trabalhador não deveria receber dinheiro algum, para evitar que ele o gastasse de forma incorreta. O salário deveria ser pago em vale-alimentação, vale-roupa, vale-transporte, vale-aluguel, vale-gás, vale-qualquer-coisa, tudo pré-determinado por esses mesmos intelectuais que acreditam sempre saber o que é melhor para os outros.
Essas empresas, naturalmente, não são movidas pela bondade. A mesma reportagem diz “estimativas indicam que o mercado de vale-refeição e vale-alimentação movimenta R$ 100 bilhões por ano no país, mas a associação não divulga esses números.” A associação também não diz que as empresas chegam a lucrar 13% deste valor, em troca de um serviço completamente inútil de intermediar o dinheiro que poderia ir diretamente do empregador para o empregado. Todas essas empresas poderiam simplesmente desaparecer, e nenhuma falta fariam à sociedade (mas claro que alguns reclamariam de perder seus privilégios).
Concluindo: as duas reportagens são lamentáveis na forma e no conteúdo, pela passividade com que repetem argumentos falsos e escandalosamente mal-intencionados. Um bom jornalista poderia, claro, noticiar o fato e citar que existe quem se oponha, mas sem transformar a reportagem em um press-release de grupos de lobby disfarçados de associação de classe.
Já os fatos em si, ou seja, as novas leis, esses são muito positivos, embora ao mesmo tempo mostrem o quanto ainda falta percorrer. É assustadora a naturalidade com que nossa sociedade aceita a idéia de que cada pessoa deva ser tutelada, controlada, obrigada a fazer X e proibida de fazer Y porque alguma sumidade decidiu que deve ser assim. Já é tempo de começarmos a pensar que o direito de cada um decidir sobre sua própria vida não deve ser visto como um favor dos políticos, mas sim como um princípio básico da sociedade.
Esquece o autor do papel exercido nas farmácias por seus balconistas, que, na verdade, constituem a primeira linha de frente na venda e na indicação de remédios que não exijam recomendação médica por escrito.
Esquece, também, a prática da venda de certos medicamentos em promoção, que rendem uma boa comissão aos balconistas responsáveis por essa vendas.
Lembremo-nos que a concorrência sempre foi um dos bons freios que a economia contrapõe a certos absurdos comerciais, estribados, quase sempre, na execrável exclusividade.
Arael, eu não esqueci o papel das farmácias, tanto que escrevi “As farmácias continuarão vendendo estes produtos, claro, e quem quiser consultar um farmacêutico antes de comprar, basta comprar em uma.” (ênfase em “quem quiser”)
Quanto à concorrência, concordamos: não há forma melhor de impedir abusos do que dar ao consumidor o direito de escolher.
Esse é um problema que vá vem há muitos anos. Não a toa que as grandes redes passaram a ter uma farmácia própria dentro do supermercado e não junto às demais mercadorias. Até porque foi a partir desse lenga lenga que o setor farmaceutico passou a ter produtos alimentícios diversos, também.
O hábito de conseguir privilégios e exclusividades vêm de séculos, e está em todas as áreas. O remédio para isso é um povo que não ache “normal” quando o governo cede aos lobbies e decreta essas exclusividades.
Vale lembrar que isso não se aplica só a grandes empresas. Cada dia surge uma regulamentação “reservando” determinada atividade a pessoas que tenham um determinado certificado e possuam uma determinada carteirinha.
Bom dia,
Estudantes de administração sonham com lei que exija que estabelecimentos comerciais e outros sejam obrigados a contratar administradores formados. Ora se eu arrisco meu capital em determinada atividade e se porventura vier a ser obrigado a contratar um administrador, certamente poderei processa-ló se não tiver resultado positivo.
Sérgio, certamente a lei, se existir, vetará explicitamente essa possibilidade. Hoje toda empresa precisa contratar um contador, mas se o contador fizer as demonstrações mal-feitas, quem paga as multas e responde até criminalmente é o dono da empresa. Para usar a justiça é preciso pagar um advogado, mas se o advogado perder a ação por incompetência é quase impossível responsabilizá-lo.
Os exemplos são muitos, a idéia é a mesma: A empresa é obrigada a pagar pelos serviços mas quem recebe não tem responsabilidade nenhuma.