MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Escrevo este pitaco inspirado pela coluna do Rodrigo Constantino, que mostrou, com o exemplo da venda de um carro, como é fácil fazer negócios nos EUA. Sem despachantes, sem carimbos, sem cartórios, sem taxas. Nós, do lado de cá, ficamos apenas boquiabertos de inveja. Acontece que nossas origens culturais definem e explicam estas diferenças.

Em lugares como EUA e Suíça, considera-se que um país é formado, antes de mais nada, por seus cidadãos. Todo o resto existe para eles e em função deles. É bem conhecido o preâmbulo da constituição norte-americana, que começa com “Nós, o povo…” e define, já nesta primeira frase, que é o povo quem cria o governo e dá permissão para ele existir e exercer suas funções.

Por estas bandas, a coisa é bem diferente. Somos herdeiros de uma cultura de séculos onde sempre existiram dois tipos de pessoa: os que mandavam, e os que obedeciam. Em 1500, Pedro Álvares Cabral “tomou posse” das terras daqui “em nome do rei”. E daí em diante, sempre foi encarado como normal que houvesse um soberano mandando em tudo. Em 1822, Dom Pedro deu um golpe nas instituições vigentes e declarou que a partir de então quem mandava ali era ele (é curioso notar que a nossa independência só não pode ser considerada inconstitucional porque a primeira constituição de Portugal entrou em vigor em 23 de setembro de 1822, exatamente 16 dias depois do grito de D.Pedro). E de lá para cá a única coisa que mudou é a quantidade de gente mandando, que não pára de aumentar.

Enquanto os EUA ainda mantém sua primeira constituição, nós já estamos na sétima, que por sinal começa com “Nós os representantes do povo…”, para mostrar bem a diferença. Nos EUA os direitos fundamentais são considerados auto-evidentes, e a constituição define limites explícitos para a intromissão do governo. Aqui, tudo que um cidadão puder fazer é considerado um favor do estado.

Países desenvolvidos reconhecem que, sem o povo, um país é apenas um monte de riscos em um mapa. Em outras palavras, o país pertence ao povo, e o povo é o dono do país. Não é assim por aqui. O povo aqui é como uma sogra ou um cunhado, que é apenas tolerado, tratado como um hóspede indesejável, e sempre que possível relembrado do quanto sua presença é inconveniente e desagradável.

Faz parte de nossa cultura essa postura submissa, de dirigir-se ao governo de joelhos, pedindo que V. Excelência se digne a deferir o pedido, e aproveitando o ensejo para renovar nossos votos de elevada estima e consideração. Trabalha-se a vida toda deixando mais de um quarto dos rendimentos na mão do INSS, mas quando se chega aos 65 e se requer a aposentadoria, nos termos da lei, escuta-se que devemos “aguardar a concessão do benefício”. Concessão? Benefício? É, a cultura de poder e domínio começa pelo vocabulário. No meu tempo de empresário, minha empresa tinha enfileirados na parede meia dúzia de alvarás e licenças que me permitiam trabalhar. Quase todas começavam com a fórmula “O Exmo. Sr. fulano de tal, no uso de suas atribuições, resolve conceder…” Não é como se o funcionário público, cumprindo suas funções, constatasse que, não havendo impedimento, não podia se opor ao meu direito objetivo de trabalhar. Não, ele “resolve conceder”. Eu, contribuinte, devo receber agradecido o favor.

Outro bom exemplo da diferença é o direito de propriedade. Nos EUA dos século 19, os Homestead Acts davam a qualquer cidadão o direito de se estabelecer em uma terra desocupada e receber o título de propriedade. Estas leis beneficiaram 1.600.000 famílias, concedendo um total de 650.000 km2 de terras (aproximadamente 10% do território do país). E se alguém achasse ouro ou petróleo nas terras, sorte dele.

Por aqui, a Lei de Terras de 1850 definiu que todas as terras não ocupadas pertenciam ao estado, e mesmo quando alguém compra alguma coisa, é dono até certo ponto: só pode fazer aquilo que o governo deixa, e para fazer é preciso obter licenças, alvarás e permissões para cada detalhe; se encontrar algo embaixo da terra, não é dele, é do governo; até mesmo cavar um poço para obter água depende da vontade do governo; até mesmo a chuva que cai deve obedecer às ordens do governo.

Bom, se o estado é dono de tudo e manda em tudo, deve ser tudo uma maravilha, certo? Errado. O problema aqui, e isso vai surpreender muita gente, é que o estado não existe. “Estado” é apenas uma abstração jurídica, um nome coletivo para dezenas de senadores, centenas de deputados, milhares de secretários, dezenas de milhares de vereadores e centenas de milhares de funcionários federais, estaduais e municipais, cada um com suas idéias, suas amizades, suas lealdades e principalmente seus interesses. A única coisa em que todas essas pessoas concordam é que o cidadão comum deve pagar sem reclamar todos os impostos, contribuições, taxas e tarifas que eles inventarem. Todo o restante cai em uma disputa por poder, influência, dinheiro e privilégios.

A sabedoria popular diz que “cachorro com dois donos morre de fome”. Imagine-se o que acontece quando um país gigantesco declara que quase tudo está sob a propriedade ou sob as ordens dessa barafunda de gente, agrupada em milhares de “órgãos públicos”, cada um tentando mandar mais que os outros. Na prática, quase tudo que existe por aqui é terra de ninguém, onde “manda quem pode e obedece quem precisa”.

Exemplo prático: com a guerra na Europa, estamos preocupados com o fornecimento de fertilizantes, vitais para nosso agronegócio. Há quem diga que poderíamos produzir nossos próprios fertilizantes, com nossos próprios recursos minerais. Não produzimos, e não faltam explicações dizendo de quem é a culpa, mas ninguém faz a pergunta fundamental: quem é o dono?

Em outros países, se alguém descobre que em suas terras existe minério de potássio, ou de ferro, ou de nióbio, só não vai explorar esse minério se for muito burro. Mas por aqui, todos os minérios são do estado, que como já vimos não existe. O minério não é do executivo, nem do legislativo, nem do judiciário, nem do ministério público, nem das agências reguladoras, nem das empresas estatais. É de todos eles; consequentemente, não é de ninguém. E aquilo que não é de ninguém geralmente não é bem cuidado.

10 pensou em “CULTURAS

  1. Marcello,

    Esse excelente texto é a cara do Brasil, patrimonialista e sem moral política. Se os DETRANs sempre foram uma das maiores fontes de renda para o estado corrupto; HOJE são os cartórios de Registro Geral de Imóveis.

  2. Sobre o último paragrafo .O dono , contrariando tudo aquilo que é descrito no excelente texto , não são os ” índios ” , que atende os desejos das ONG’s ( acho que esta sigla poderia ser o mote de mais um texto do Marcelo ) e eles impedem a exploração das terras ?

    • Se os índios são donos ou não de alguma coisa, depende justamente dessa turma toda: Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, FUNAI….

      Se os índios realmente fossem donos das tais terras, por que eles seriam contra a exploração? Não gostam de dinheiro?

      • Lendo o que me é possível ler , eu os comparo aos estudantes que foram doutrinados durante pelo menos 2 décadas, e passaram acreditar que tudo aquilo que Lula e o PT fazem é o correto , e no caso dos ” indios ” , eles acreditam no que lhes diz as ” ONG’S ” .

  3. É isso, vizinha. Começa com “Nós os representantes do povo”, passa pelos códigos, estatutos, leis, decretos, portarias, resoluções e regulamentos e sempre termina com “a critério da autoridade competente”.

  4. Caro Marcelo,

    É por textos brilhantes como este que sou cada vez mais teu fã. (Apesar de, algumas vezes, discordamos em detalhes).

    Com relação à nossa herança cultural, falas a mais profunda verdade. Só que já são bem conhecidas as técnicas para se efetivar mudanças culturais em grandes grupamentos humanos. Eu cursei um mestrado nos Estados Unidos, e outro no Brasil, cuja ênfase era “Organizational Behaviour” e, durante muitos anos, fui o cara responsável por efetivar este tipo de mudança em uma organização com milhares de funcionários.

    FUNCIONA! Podes crer que funciona. É só querer.

    O meu artigo de domingo será um pouco nesta direção. Aguarde.

  5. Ah, Marcelo,

    Aqui em casa, reuno-me com Quesli para o café da noite, quando retorno dos cocos,onde eu digo que na cozinha da Sala da Justiça, a Mulher Maravilha e o Super Pateta estão a lanchar…

    Creio que, baseando-se em seu texto, super pateta é uma ótima definição para nano-empresários pagadores de pesados impostos com Sancho para sustentar a gigantesca e paquidérmica máquina estatal, não é mesmo?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *