MARCOS MAIRTON - CONTOS, CRÔNICAS E CORDEIS

Nesses tempos em que governos de muitos países anunciam a criação de instrumentos legais para (supostamente) combater as tais “fake news”, velhas mentiras continuam ocupando o imaginário popular como se verdades fossem.

Digo isso a propósito de uma frase que ouvi diversas vezes esta semana, tanto nas redes sociais como de viva voz: “Quem não deve, não teme”.

Como é possível que uma frase tão sem sentido venha sendo repetida ao longo dos anos, como se fosse um axioma, geralmente em tom de desafio ou provocação?

Se quem deve teme, mais motivos para temer tem aquele que não deve. Afinal, se um pode ser obrigado a pagar o que deve, o outro pode acabar sendo obrigado a pagar o que não deve. Terrível possibilidade!

Apesar disso, ainda ontem, vi alguém usar esse argumento, ao questionar o direito de um investigado ficar em silêncio:

– Se quis ficar em silêncio já é um sinal que tem alguma coisa a esconder. Quem não deve, não teme!

É fácil pensar assim, quando não se está sendo interrogado, sabendo que cada tentativa de explicar os fatos pode ser interpretada como uma autoincriminação. Nos tempos atuais, ainda há o risco (alto!) de que cada frase pronunciada esteja, no mesmo dia, sendo escrutinada por milhares de pessoas em redes sociais. Com a costumeira má vontade da maioria dos internautas.

Por coincidência, iniciei, neste fim de semana, a leitura do livro “Nos Campos de Concentração Soviéticos”, de Vladimir Tchernavim. Após narrar a prisão dos seus colegas de trabalho pelo GPU (polícia secreta da URSS), o autor desabafa:

Não tenho palavras para descrever o que senti depois da prisão dos meus colegas de trabalho. Eu sabia que estava em um beco sem saída e que não havia nada que eu pudesse fazer. Era por puro acaso que eu ainda continuava livre, e a única explicação para isso era a ineficiência por parte do GPU, que não tinha o meu nome em suas listas apenas porque eu havia acabado de chegar a Moscou vindo das províncias.

Vladimir Tchernavim acabou sendo preso dias depois, apesar da sua inocência.

Esse é um exemplo extremo. Porém real. De todo modo, é preciso reconhecer que mesmo o mais justo dos juízes corre o risco de condenar um inocente. Pode ser induzido a erro por argumentos falaciosos, por um processo mal instruído ou simplesmente pelo enviesamento ideológico da sua própria formação moral, cultural ou intelectual.

Quando se fala em “devido processo legal”, “ampla defesa” e coisas assim, a ideia é exatamente a de evitar que alguém seja condenado ou preso injustamente. Porque, como costumam dizer os juristas, é preferível absolver um culpado que condenar um inocente.

É por isso que existe a expressão latina “in dubio pro reo”, a nos lembrar que, na dúvida, o juiz deve decidir em favor do réu.

O certo é que, seja pelo risco da condenação injusta, seja pela possibilidade de, ainda que absolvido, ficar mal visto socialmente, quem deve tem motivos de sobra para temer.

Aliás, acredito que não seja por coincidência que, nos últimos dias, cada vez que ouvi a frase “quem não deve, não teme”, ela foi pronunciada por alguém que demonstrava interesse em condenações.

Considerado tom de voz e a expressão corporal, o sentimento manifestado era de vingança, e não de Justiça.

Tudo isso me leva à mesma conclusão: quem não deve é quem mais teme; ou deveria temer.

4 pensou em “CRÔNICA DE SEGUNDA-FEIRA: QUEM NÃO DEVE, NÃO TEME?

  1. Como sempre, mais uma inteligente reflexão do cotidiano. Todavia, demonstra o autor, amigo de longa data, que nunca advogou na justiça do trabalho. Nela, infelizmente, o reclamado há muito substituiu o simples temor de pagar sem dever, pela certeza de que, mesmo tendo todas as razões do mundo, a justiça social o fará pagar pelo pecado de ser empregador.
    Aliás, no nosso Brasil varonil, a frase verdadeira seria: QUEM NÃO DEVE, NÃO TEM!!!!

    • Jorge Alberto, caro amigo, iniciei minha jornada como profissional do Direito exatamente na Justiça do Trabalho. E o pior: advogando para empresas!!!
      Isso foi em meados de 1994, prosseguindo até o final de 1997.
      A gente já ia para a chamada audiência inaugural pensando num acordo, porque ganhar era muito difícil.
      Mas tem um detalhe que não pode ser esquecido: propostas de acordo no valor de 10% da quantia pretendida muitas vezes eram acatadas imediatamente pelo advogado do reclamante.
      Alem de terem consciência do quanto haviam inflado o pedido, valia a pena para eles terminar a audiência rapidamente e correr para outra vara (na época, Junta de Conciliação e Julgamento) e chegar a tempo de começar tudo de novo.
      Os colegas do lado oposto atuavam em muitos processos.

  2. Estamos vivendo tempos sombrios Dr. Mairton, a perseguição está apenas começando e com a colaboração da GPU, STASI. GESTAPO, SNI e outras assombrações tupiniquins incorporadas, logo logo teremos os nossos próprios Gulags e afins. Não querem “pacificação”, querem revanche e aniquilamento. Quem viver, verá!.

  3. Mairton acabou de criar um axioma: quem não deve pode ser cobrado a pagar o pato. As vezes essa filosofia vai passando de geração em geração sem ninguém questionar. É como o caso da mulher cujo marido perguntou: “porque você sempre corta a cabeça e o rabo do peixe antes de botar na frigideira?”.. “Não sei aprendi com minha mãe. Vou perguntar porquê ela fazia assim”. E perguntou e a mãe disse: “não sei. Aprendi com sua vó. Eu vou perguntar a ela “. E perguntou: “Mãe, por que a senhora cortava a cabeça e o rabo do peixe quando ia botar na frigideira?”. A mãe sorriu e disse: “é que a frigideira era pequena e o peixe não cabia nela.”

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