MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Se você perguntar a um cidadão dos EUA o que a expressão “WE THE PEOPLE” lembra, ele provavelmente responderá “a constituição”. É que o prólogo da constituição deles começa exatamente assim: “Nós, o povo, […] estabelecemos esta constituição para os Estados Unidos da América”. A idéia é estabelecer de forma categórica que o governo foi criado pelo povo, para servir ao povo. A lei não vêm de cima, não foi imposta pelos políticos e pelos burocratas. Ao contrário, estes é que devem sua existência à vontade da população.

No Brasil, claro, a coisa é diferente. Nossa constituição começa com “Nós os representantes do povo”, e a cada poucas frases reafirma a idéia de que o governo e a lei estão acima do povo. Em nossa cultura, governos não nascem do povo; pelo contrário, são tão naturais e eternos como o sol, a lua, os mares e as montanhas. Nossos juristas chegam a afirmar (embora a palavra em si não apareça no texto) que existem “cláusulas pétreas”, por mais hipócrita que isso possa parecer em um país que já teve sete constituições diferentes. Todo brasileiro que escuta essa expressão deveria subir na cadeira mais próxima e gritar “pétrea é a vontade do povo!”, mas não é isso que acontece. Nossa constituição reflete o que nossa sociedade pensa: as pessoas são meros escravos do estado, devem a ele sua existência e sua pouca liberdade.

Existem conceitos que em outros lugares são considerados direitos fundamentais, condições básicas para que uma pessoa se diferencie de um animal irracional. Mas na sociedade brasileira, estes direitos fundamentais são vistos como favores concedidos pelo governo, sujeitos às limitações e contrapartidas que ele bem entender. Direito à propriedade? Só se pagar taxas, recolher impostos e atender à “função social”, que propositalmente não é definida na constituição. Direito à trabalhar? Só para quem atender às exigências do governo. Direito à livre expressão? Só se não fugir das regras que a lei determina. E assim por diante.

Mas continuemos nas comparações. Outra expressão que todo norte-americano conhece é “Taxpayer´s money”. Significa “o dinheiro do pagador de impostos”. Não dá para falar em política nos EUA sem usar essa expressão. Cada vez que ela é usada, mostra a todos de onde vêm o dinheiro que o governo usa para se fazer de generoso e bonzinho.

No Brasil essa expressão não existe. O que existe aqui é “dinheiro público” ou “dinheiro do governo”, que são usadas como se fossem a mesma coisa (e na prática são mesmo). O brasileiro vê os impostos da mesma forma que enchentes, incêndios e vendavais: são ruins, mas não adianta reclamar. E não é típico do brasileiro perceber uma relação entre os impostos que paga e os salários milionários dos funcionários do governo; para ele, o dinheiro que o governo gasta é “dinheiro público”, que nasce em árvores ou cai do céu, e o que todo brasileiro deseja é que sobre um pouquinho para ele.

Nos Estados Unidos do século 19, várias leis conhecidas como Homestead Acts davam a qualquer cidadão o direito de se instalar em terras desocupadas e tornar-se seu proprietário legal. Milhões de famílias conquistaram um pedaço de terra e uma ocupação graças a esse sistema (que permaneceu em vigor até 1976, por sinal). Já no Brasil, a Lei das Terras, promulgada em 1850, determinava que todas as terras desocupadas pertenciam ao estado. Na teoria, elas seriam vendidas em leilões justos e democráticos, já que nossas leis são sempre cheias de boas intenções. Na prática, os pobres tinham que passar por um calvário de burocracia e má-vontade, enquanto os políticos e seus amigos ganhavam de presente ou por preços simbólicos a propriedade de enormes extensões de terra, muitas vezes sem sequer saber direito onde ficavam. Com o passar dos anos, a civilização chegou a esses lugares e descobriu que aquelas terras cheias de mata virgem pertenciam aos herdeiros de algum figurão da côrte imperial; coisas assim acontecem até hoje.

Davy Crockett foi um militar e político do início do século 19 nos EUA. Os fatos verdadeiros sobre sua vida (como ter participado da famosa Batalha do Alamo) se misturam com as lendas e exageros. Uma dessas histórias fala sobre um discurso que ele teria feito em 1830, contra um ato do congresso que concedeu uma pensão para uma viúva de um almirante. Crockett teria dito que a função do congresso é fazer leis iguais para todos, não conceder favores individuais. Alguns colegas teriam argumentado que era uma quantia pequena e “sem importância”, e não merecia tanta discussão. A resposta foi uma frase que entrou para a cultura popular do país: “Não importa se é muito ou pouco. O que importa é que o dinheiro não é de vocês para dar”.

Naturalmente, aqui no Brasil não passaria pela cabeça de ninguém dizer a um político que o dinheiro dos impostos não é dele. Qualquer criança sabe que é. É deles, e eles fazem o que bem entendem com ele. Os pobres simplesmente dão de ombros e seguem com sua vida, enquanto os jovens mais entusiasmados fazem longos discursos sobre a social-democracia, a importância do estado para promover o bem-estar social, a suposta sabedoria do governo em fazer as coisas de forma justa e correta, e por aí adiante. Muitos gostam de afirmar que dar dinheiro para o governo é uma obrigação advinda de um certo Contrato Social, que eu particularmente não lembro de ter lido e muito menos assinado.

Comparações são sempre perigosas, correm o risco de não mostrar tudo que deveriam. Mas é pertinente comparar Brasil e Estados Unidos, por causa de suas similaridades: ambos são países grandes, bem acima da média mundial. Ambos foram colônias de países europeus, são próximos em idade (uns cinquenta anos de diferença). Ambos têm uma população grande, geografia variada, abundância de recursos naturais. Mas se existem todas estas semelhanças, também existem enormes diferenças, sendo a mais óbvia o fato de um ser o país mais rico do mundo e o outro ser sempre o “país do futuro”, um futuro que nunca chega. As comparações que fiz explicam essa realidade? Não explicam nem tem essa pretensão: são apenas exemplos para mostrar que a forma de pensar de um e de outro são bastante diferentes.

Certamente é mais pertinente ao Brasil observar os exemplos dos EUA do que dos países europeus, por exemplo, que têm características históricas, geográficas, sociais e culturais muito mais distantes das nossas. Infelizmente, nossa história tem sido pródiga em copiar dos EUA os seus erros, e não os seus acertos. Importamos de lá o gosto por regulamentações governamentais e por judicializar até mesmo as menores disputas. Importamos a moda do falar politicamente correto e da glorificação das redes sociais. Aqui, como lá, acreditamos que todos devem ter muitos direitos e nenhum dever, e que cada cidadão deve se ocupar apenas daquilo que gosta, deixando as tarefas desagradáveis para os outros. Acreditamos, como eles, que uma idéia é válida ou não de acordo com o número de “curtidas”, “joinhas” e “likes” que recebeu. Lá, como aqui, vemos políticos prometerem muito mas fazerem pouco, mas o povo nunca deixa de acreditar que o próximo político vai cumprir tudo que prometeu e transformar o mundo em um paraíso. Aqui e lá, entra presidente e sai presidente e todos eles se preocupam muito mais em garantir sua reeleição do que em governar o país.

7 pensou em “COMPARANDO

  1. Comparar Brasil e Estados Unidos, por causa de suas similaridades: ambos são países grandes territorialmente, bem acima da média mundial. Ambos foram colônias de países europeus, são próximos em idade (uns cinquenta anos de diferença). Ambos têm uma população grande, geografia variada, abundância de recursos naturais. Mas se existem todas estas semelhanças, também existem enormes diferenças, sendo a mais óbvia o fato de um ser o país mais rico do mundo e o outro ser sempre o “país do futuro”. Dizem boas e más linguasque a diferença real está no texto abaixo:

    Existe uma brincadeira – em tom de piada – que reproduz uma conversa entre um cidadão estrangeiro e Deus. Ele questiona a respeito de um “certo” protecionismo com o Brasil quando da criação do mundo. Eis o diálogo:

    – O Senhor criou o mundo e os países e nestes colocou terremotos, tempestades, furacões e até desertos.

    – E verdade, meu filho.

    – Pois é, mas no Brasil o Senhor colocou matas verdejantes, mar maravilhoso com brisa fresca e rios de águas límpidas. Lá a natureza é bela e tranquila.

    – É verdade, meu filho.

    – Poxa Senhor, isso não me parece justo.

    – Calma meu filho, ainda não acabei a obra, você vai ver o povinho que vou colocar lá!

    • Caro Sancho, piada velha, eu me incluí neste “povinho” e não estou muito lisonjeado.

      Eu tenho uma mania de olhar para frente e não pelo retrovisor. O passado existe apenas para nos ensinar a não repetir os erros já feitos.

      Temos um presente promissor e mudanças estão acontecendo para melhor.

      Esta história de demonizar o Estado como se fosse um ente perverso, não leva a nada, se não houver propostas.

      Sou um otimista incorrigível e acredito nas pessoas, no “povinho” deste país.

      Abração.

      • Caríssimo João,

        Assim como tu, faço parte do time de otimistas incorrigíveis e acredito nas pessoas, no “povinho” deste país.

        Leia o comentário abaixo do Bertoluci e entenderás que são historinhas que existem desde a época em que não havia internet.

        Apenas isso, historinhas criadas pela criatividade de gente incorrigível, que vê sempre uma oportunidade de colocar bom-humor nas mais variadas situações.

        Incorrigíveis do porte de uma turma maravilhosa como, por exemplo o PASQUIM (como esquecer aqueles caras maravilhosos?).

        Seus embates com seu amigo Carlos não estão fazendo muito bem para seu fígado.

        Deixo a ti um abraço fraterno e recomendo overdose de crônicas de ZéRamos, Sancho, Goiano, Marcos André, Carlos Eduardo Santos, Violante, Carlito Lima e Cícero Tavares para melhorar seu humor.

        Ah, poesia também faz um bem danado. Temos para desopilar o fígado os gigantes Anderson Braga Horta, Dalinha, Jizuis e Malta.

        • Caro Sancho,

          Às vezes deixo-me levar pelo fígado e fico um tanto quanto intolerante.

          Tento nunca tomar as coisas pelo ódio, tanto é que poucas vezes parto para uma linguagem de baixo nível, a menos que as coisas descambem para a fuleiragem (o que de vez em quando ocorre aqui no JBF). Ocorre ultimamente não estou com muita disposição.

          Uma vez tentei ser irônico com v., que me encheu de elogios em um comentário na coluna do Sr. Carlos e falei que me “puxava o saco”. Errei completamente, pois nada mais me alegra e me enche de satisfação do que um sincero elogio seu, pois o considero muito.

          Se eu lhe falo às vezes que é “maluco”, tome isso como um elogio, pois eu preciso muito desta loucura hoje.

          Vamu que vamu, um abraço.

          • Reitero que há um santo remédio:
            Deixo a ti um abraço fraterno e recomendo overdose de crônicas de ZéRamos, Sancho, Goiano, Marcos André, Carlos Eduardo Santos, Violante, Carlito Lima e Cícero Tavares para melhorar seu humor.

            Ah, poesia também faz um bem danado. Temos para desopilar o fígado os gigantes Anderson Braga Horta, Dalinha, Jizuis e Malta.

            Contabilizei que somos 200 os fubânicos que sempre comentam as colunas e destes, tenho 100 que moram em meu coração (alguns nunca pagaram o aluguel, mas finjo não ver). Estás no top 10 dos que possuem em meu peito direito a suite e frigobar cheio.

    • Boa lembrança, Sancho.

      Uma outra diz que um sujeito morreu e foi para o inferno. Chegando lá, um diabinho lhe disse que como ele era um pecador ilustre, podia escolher o setor do inferno onde passaria a eternidade. E então sussurrou-lhe no ouvido: “escolha o brasileiro”.

      Veio outro capeta e começou a explicar: no inferno alemão, levaria chicotadas; no italiano, seria queimado com ferros em brasa; no espanhol, seria mergulhado em azeite quente; no brasileiro, teria que comer dois baldes de merda por dia.

      O recém-chegado resolveu confiar na dica e interrompeu a explicação: “Fico com o inferno brasileiro”, disse ele.

      Foi levado pelos corredores até uma grande porta, e colocado para dentro. Encontrou um monte de gente batendo papo, se divertindo e tomando cerveja, enquanto um samba tocava ao fundo.

      O pecador perguntou para o primeiro que encontrou:

      “aqui é o inferno brasileiro?”
      “Isso mesmo”
      “mas vocês não têm que comer dois baldes de merda por dia? Estou vendo todo mundo contente!”
      “é que um dia não tem merda, outro dia não tem balde, e o diabo-chefe nunca aparece para trabalhar”

      Nos anos em que trabalhei em uma quase-estatal, todas as bobagens administrativas, especialmente faltas inexplicáveis de material, eram explicadas como “inferno brasileiro é assim!”.

      • Realmente. como expliquei acima ao João Francisco, são apenas historinhas antigas (da época em que nem internet havia). São contadas em grupos de amigos, dentro de empresas e corroboram a grande humor do brasileiro até na adversidade.

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