O CEGO
Entre os cinco sentidos da vida – a visão, o tato, a audição, o paladar e o olfato – não sei dizer qual deles é o mais importante. Às vezes penso ser a visão. No entanto, quando começo a imaginar nos resultados derivados da captação de estímulos processados pelo cérebro tão indispensáveis à vida, concluo que a falta de um deles representa sempre enorme prejuízo.
A visão – essa forma de energia luminosa que nos chega pelas pupilas e nos traz os dados do que realmente existe ao nosso redor – me parece algo milagroso. Por isso, poder desfrutar desse milagre durante toda a vida constitui uma das maiores dádivas. Sei que há milhões de pessoas que vivem os dias sem se preocupar com essa graça misteriosa: a visão. Vivem num estado de absoluta falta de lucidez para compreender o mundo a partir do próprio entorno social. Sim, me refiro ao desvairamento ou à perturbação que afeta tanta gente em nossos dias, nos levando, cada vez mais, a meditar sobre tão provocante assertiva: cego não é apenas aquele que não pode ver, mas, também, o que, podendo ver, não enxerga um palmo diante do nariz.
Falo sobre esse tema da cegueira para afirmar que, entre as pessoas afetadas por essa lastimável limitação, ocorrem milagres impressionantes. Um desses casos se deu com Aderaldo Ferreira de Araújo (Crato, CE, 1878; Fortaleza, 1967), mais conhecido como Cego Aderaldo. Ainda jovem, ao trabalhar como foguista em locomotiva ferroviária, perdeu abruptamente a visão num acidente. Tempos depois sonhou declamando versos e, então, a partir dessa revelação, descobriu que, no plano da realidade, poderia fazer o mesmo. Eis o milagre.
Lembraram os antigos que ninguém pode sentir-se feliz sem chegar ao termo da vida, se, no curso dela, não sofreu os golpes da fatalidade. No caso do Cego Aderaldo esse juízo caiu como luva. Entre os traços trazidos à luz pelo cineasta Rosemberg Cariry, um dos destacados biógrafos do famoso poeta cearense, a grave fatalidade da cegueira em vez de o levar à mendicância, como é costume entre pessoas pobres, concorreu para ele reagir e dar a volta por cima, seguindo o caminho da criação poética e chegando a ser consagrado como verdadeiro mito.
Justamente por isso, o cineasta baiano Glauber Rocha advertiu que a adversidade provocada pelo rigor do Sertão nordestino, onde a vida dos que ali habitam parece sempre assinalada pelo timbre da “obscuridade”, tem levado os poetas cegos a enxergarem melhor do que os sãos dos olhos… Em certo sentido, o cineasta autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol nos deu o tom do impressionante acervo poético deixado por Cego Aderaldo, vivendo numa região calcinada e castigada pelas forças da Natureza, porém, não mais do que o descaso dos politicos que, via de regra, olham mais para seus umbigos e interesses do que para os necessitados daquele rincão brasileiro.
Cego Aderaldo salta por inteiro nos perfis biográficos de Rosemberg Cariry – seja na pesquisa das fontes primárias, seja no documentário cinematógrafico, meios reveladores da admiração de seus leitores ao longo de várias gerações que desejam conhecer de perto o amplo painel temático de glosas e motes, poemas e canções, pelejas ou desafios magistrais, como é o sempre lembrado encontro de Cego Aderaldo com Zé Pretinho, também poeta extraordinário natural dos Tucuns do Piauí.
Vale, portanto, recordar, o final desse encontro entre os dois vates para se ter ideia da grandeza de imaginação e da mestria no domínio da chamada cantoria com seus desafios. Já perto do encerramento, quando os poetas improvisavam sobre o mote:
“É 1 dedo, é 1 dia, é 1 dado
É 1 dado, é 1 dia, é 1 dedo”
–, que em tudo lembra um trava-lingua, Zé Pretinho pediu mudança de assunto:
Zé Pretinho:
“Cego, agora puxa uma
das tuas belas toadas
pra ver se estas moças
dão algumas gargalhadas
quase todo povo ri
só as moças estão caladas”.
Cego Aderaldo, então, de modo surpreendente, mais do que de repente, desorientou o seu rival e os ouvintes com a famosa sextilha:
Cego Aderaldo:
“Amigo José Pretinho
eu não sei o que será
de você no fim da luta
porque vencido já está;
quem a paca cara compra
a paca cara pagará”.
Zé Pretinho:
“Cego, estou apertado
que só um pinto no ovo
estás cantando aprumado
e satisfazendo ao povo
este seu tema de paca
por favor diga de novo”.
Cego Aderaldo:
“Disse uma e digo dez
no cantar não tenho pompa
presentemente não acho
quem o meu mapa rompa;
paca cara pagará
quem a paca cara compra”.
Zé Pretinho:
“Cego, teu peito é de aço
foi bem ferreiro que fez
pensei que o cego não tinha
no verso tal rapidez
cego, se não for massada
repita a paca outra vez”.
Excelente crônica do grande Cláudio.Aguiar.
A riqueza poética dos nordestinos por este vasto sertão, pela visão, sensibilidade e a costumeira escrita clássica do grande mestre.
Parabéns, Professor Cláudio.
Destaque-se que, o nosso JBF, em plena terça-feira, cravou 3614 leitores espalhados pelo mundo.
Vide: https://luizberto.com/a-besta-avuando-pelo-mundo-2/
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