CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA

A GARÇA

Nos últimos dias, motivado pela pandemia, tenho andado cedo, logo após a chegada da aurora sobre a risca do Atlântico. Com isso ganho a manhã e o resto do dia em fração de segundos ao dirigir a mirada para o Este, de onde surge a luz que, incessantemente, anda para o Oeste. Os orientais simbolizam o mundo como se fosse uma árvore, na qual o Oriente situa-se na parte superior, enquanto o Ocidente fica na parte inferior, porque nela a luz cai. Talvez daí venha a imagem poética: “cai a tarde”. Na verdade, o que acontece parece ser o contrário, pois, logo após a madrugada ergue-se a aurora luminosa e complacente. Melhor seria dizer: “vem o alvorecer”.

Na praça por onde ando solitário, apegado aos pensamentos que ordenarão a agenda para o dia que começa, eis que vindo não sei de onde às cinco horas da manhã surge uma garça. Sem perda de tempo ela se acomoda sobre a margem da água escura da pequena lagoa. Silenciosa e com ar de absoluto fulgor, a alvura de suas penas mistura-se com a das vitórias-régias. Sim, acreditem, por ali, um dia, alguém ousou deixar sobre a lâmina dessa água represada de fonte secular da praça de minhas caminhadas matutinas maravilhosos exemplares de vitórias-régias. Tudo deu certo, porque elas cresceram vigorosas e adornam a luminosidade da superfície da água com a alegria das boas estações.

Não foi fácil identificar a garça no primeiro golpe de vista. Quando a vi pela primeira vez tive a impressão de tratar-se de alguma visão, porém, era real. Ela chegara até ali de maneira descuidada e confiante.

Contrariando o meu próprio desafio de não parar a caminhada naquela praça aconchegante, parei e fiquei a contemplar a garça e as vitórias-régias, planas e quietas sobre a água. Elas formam curiosos discos circulares, paralisados por alguma força inexplicável, apesar de saber-se que, entre elas, solitárias, branquíssimas e aromáticas, nascem rebentos que permanecem presos às bagas globosas submersas, porém sem nunca chegarem a fixar-se no leito da lagoa. São de porte reduzido, talvez por estarem sob a luminosidade dos trópicos. De qualquer sorte lembram as vitórias-régias da Amazônia, onde as flores monumentais chegam a 2m de diâmetro. Eu mesmo, certa feita, às contemplei nas margens do grande rio, enquanto um guia nativo resumia a lenda da bela índia Naiá, que após se apaixonar por Jaci (a Lua na representação mitológica dos índios), costumava ficar extasiada sob o luar nas noites mornas amazonenses. Um dia, Jaci a transformou numa estrela das águas. Assim nascia a vitória-régia. Como a lua só brilha durante a noite, as suas flores também abrem e soltam seu perfume nas noites enluaradas.

Enquanto isso, na minha caminhada matinal, eu observava ao lado da margem da pequena lagoa a garça de pescoço alongado, vez por outra, a mergulhar o bico na água a fim de pegar peixe. Em seus movimentos, ordenados e medidos, ela evitava tocar nas vitórias-régias.

Todos os dias caminho pela mesma praça. Após contemplar a aurora que surge alegre como a luz que vem do Este a cobrir a risca do mar próximo. Procuro não perder os detalhes dos cantos de outros pássaros que acordam naquele entorno. Até um galo canta forte não muito distante. Eles, como eu, talvez vejam a igreja gorda sobre a suave colina com suas torres sineiras sem os sinos seculares. Em vez convocar os fiéis, anunciam o lamentável estado de ruína reinante naquele templo, onde o romancista José de Alencar ambientou uma de suas novelas.

Olho demoradamente para tudo e volto às vitórias-régias exuberantes e sorridentes. Então, procuro nas margens da lagoa a garça de pernas, pescoço e bico alongados, de penas alvas como as flores das vitórias-régias. Repito a cena todos os dias, porém, a garça não apareceu mais.

Desolado, volto a caminhar com o objetivo de completar meus dez mil passos diários. No entanto, comigo permanece a vontade de saber qual o destino daquela garça. Ocorre, então, na minha mente uma incômoda luta interior. Na verdade, me recuso a acreditar que alguém, a exemplo de muitos que por ali armam suas gaiolas e ficam à espera da captura de pássaros inocentes, tenha prendido ou capturado a garça. Com maior veemência recuso-me acreditar no pior, ou seja, que a bela garça possivelmente já tenha sido morta e servida como tira-gosto especial na mesa de alguém possuído por intensa alegria por ter conquistado aquela exótica presa.

Retomei a caminhar e mais triste ainda fiquei quando me lembrei do incauto peixinho ao ser surpreendido pelo bico longo e ágil da garça, sendo, de repente, engolido para dentro de um mundo que não era seu.

4 pensou em “CLAUDIO AGUIAR – RIO DE JANEIRO – RJ

  1. Parabéns! Mais uma pérola literária, que só aqui neste JBF, somos agraciados e surpreendidos diária e gratuitamente… graças ao trabalho ímpar do(a)s abnegado(a)s, destemido(a)s e louco(a)s Fubânico(a)s!!!

    E por falar em Garça ( que Graça!), tenho um amigo… que vos escreve, que mora em um bairro da periferia, de Belém (que não é a de Judá), que contempla, vez ou outra, o inusitado vôo matutino de uma Garça que segue um vendedor de peixe, um Peixeiro; sim, daqueles, que vem de porta em porta, com sua carroça, com balança, caixa de isopor e os demais apetrechos necessários para exercer sua labuta diária.
    Particular momento de contemplação… o Peixeiro sendo seguido do alto por uma Garça! Vez em quando, ele joga uns nacos de peixe que são prontamente capturados pelo bico certeiro daquele ser discreto, imponente, silencioso… que se precipita num vôo rasante, acrobático, preciso… de fazer inveja ao piloto de caças mais experiente. Pousa suavemente, sem medo, das pessoas, dos automóveis, dos cães que nem estranham mais a presença da tranquila e esguia ave.
    Lindo de ver!!! Quanta emoção!!!

    Fraternas Saudações Fubânicas

  2. Caro Spock Lee:
    As cenas do cotidiano, pelo visto, em muitos sentidos, repetem-se com a mesma carga de emoção, ainda que em tempo e espaço diferentes. Em seu relato a necessidade da garça faminta se manifesta em claro perigo de vida. Em ambos os casos os destinos dos peixinhos nivelam o caráter terminante e imperioso da sobrevivência. Na nossa vida, também, em grande medida, ora somos garça, ora peixinhos. Obrigado por seu relato. Abraços

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