Grãos crus de café
O som ainda está gravado na minha mente.
No final da tarde, quando o sol já estava frio, era normal escutar as batidas dos chocalhos dos bodes, cabras e cabritos, sendo “chiqueirados” para o pequeno curral improvisado. Os bodes continuavam ruminando algo comido fora do chiqueiro, enquanto os cabritos saltavam como se estivessem a comemorar alguma coisa.
Mas, os ouvidos captavam outros sons. É o tic-toc no pilão. Meu Avô pila os grãos do café que minha Avó acabara de torrar, após deixá-lo esfriar numa arupemba sobre o girau.
Um quilo de grãos de café cru, virava um quilo e trezentas gramas com o acréscimo da mangirioba.
Tic-toc!
Outras vezes, toc-toc!
Terminada aquela tarefa, o pilão era limpo e lavado. O cheiro e o gosto do café não podiam ficar. O pilão seria usado outras vezes, fazendo xerém para os pintos, ou tirando as cascas do arroz.
Café fumegante torrado no alguidá
Naqueles anos 50 e 60, já existia o moinho manual, mas nem todas as famílias podiam comprar. Era alto o valor, em que pese sua utilidade. Moía carne, moía pimenta e, às vezes moía também o café que alguns compravam já no ponto de moer. Na roça, esse luxo não chegara.
O pilão, esse sim, era usado todo dia. Para pilar várias coisas. Era como se “fosse da família”. Imagine. Um pedaço de pau com um buraco, sendo parte de uma família – apenas pela utilidade, claro.
Para alguns, o pilão era uma obra de arte que precisava ser encomendada, de acordo com as necessidades (e posses) dos usuários.
Pilão sendo usado na “pila” do café
O dia ainda não estava claro de todo. Mas, o galo cantou. E, na roça, quando o galo canta, as cabras e bodes começam a fazer barulho, não há como ficar deitado ou voltar a dormir. É hora de levantar.
Vovó, fazia tempo, estava acordada “apreparando” o café torrado no dia anterior. Café fresquinho – como ela própria falava – mas o dito cujo era quente e forte.
A mesa posta. Cuscuz (que também chamamos de “pão de milho”), tapioca, batata doce cozida, leite de cabra fervido, queijo de coalho de leite de cabra e uma “pratada” de macaxeira colhida no dia anterior. Era o café – e que nenhum idiota viajado, se metesse a chama-lo de “breakfast, petit-déjeuner ou desayuno”.
A Avó já fizera a sua etapa. Agora escolhia o feijão que, cozido, alimentaria a filharada, e os demais trabalhadores. A mistura ou o tempero do feijão era sempre: quiabo, maxixe, abóbora e, quando possível, algum osso da canela do boi, que meu Avô adorava por conta do tatano, que fazia questão de escorrer dentro do prato.
Café no bule mantém tradição sertaneja
O café torrado e pilado em casa era uma tradição entre nós. Os grãos, comprados crus, recebiam uma parcela de uma semente (mangirioba) que nunca vi em outro lugar. Era uma vagem pequena, semelhante a vagem da ervilha que, além de nós, que a colocávamos para aumentar a quantidade do café, era também preferida pelos caprinos. Por isso meu Avô nunca cortava. Pelo contrário. Plantava.
Esperta, minha Avó acrescentava a rapadura que, segundo ela, amenizava o amargo natural do café.
Ainda hoje, na roça ou em qualquer lugar, o café é uma forma de fazer amigos – mas, o café torrado em casa tem outro valor: “esse café foi torrado em casa, que minha comadre me enviou”.
Parabéns pela beleza do texto, querido escritor José Ramos!
O cheiro de café torrado em casa, nunca esqueci.
Lembrei-me de Dona Joaninha, a mãe de uma colega minha de infância, que torrava o café mais cheiroso que eu já vi, e adoçava com mel de rapadura.
A família, pouco tempo depois, se mudou para o Rio de janeiro, e eu perdi o contato. Isso há mais de 50 anos. A minha amiga se chamava Nevinha (Maria das Neves) e com ela e mais outra colega (Auxiliadora +), brincávamos de cozinhado no quintal da nossa casa. Não faltavam batata doce, arroz mole nem miúdos de galinha. Foi uma fase da minha infância que povoa meus sonhos.
Em Barra do Cunhaú (Canguaretama-RN), há um restaurante (Bar do Tonho), onde descobri o café adoçado com rapadura. Só não é torrado em casa.
Um grande abraço! Muita saúde e Paz!
Violante, obrigado. Tudo em casa é mais gostoso. Até água de pote!
Mais uma vez parabéns pelo belo escrito, mestre Zé Ramos. O café de hoje, muitas vezes, é degustado amargo e até dizem que é bom. O meu café, desde os tempos do pilão, sempre foi adoçado e até hoje continua assim. Pergunto: o café da sua querida e sábia vovó, era adoçado ou amargo?
Beni, era adoçado. Com rapadura. Ela colocava um pedaço de rapadura para ferver junto com a água que faria o café – mas, sinceramente falando, eu gostava mesmo era do acompanhamento: macaxeira, batata doce, queijo, cuscuz.