Rapadura cortada para adoçar o café
Nunca pense que a vida na infância é só peraltice, escola, comida boa ou jogar bola e andar de bicicleta ou qualquer outro brinquedo, pois a infância tem também suas agruras e dificuldades.
Papeira, ou caxumba?
Sarampo, conjuntivite (no Ceará, “dordói”), dedo dismintido, coqueluche, bexiga – acredite, isso não é nada bom. Que já enfrentou, sabe como é.
Isso, sem contar as surras (no Ceará, “pisa”) com cipó de marmeleiro, os castigos em casa e na escola – além daqueles famosos: “quando a gente chegar em casa, vamos conversar”; ou ainda a ansiedade da pisa antecipada, com o famoso: “quando teu pai chegar, vou contar tudo pra ele”!
Gripe com febre alta e assistir o aparelho fervendo com a ampola e a agulha para tomar aquela injeção que doía mais que parir uma criança?!
Tudo café pequeno.
Tomar banho, querendo ou não – porque está na hora!
Ouvir: “vá banhar, daqui a pouco vou lhe esfregar, pra tirar esse “serôto” do cangote”!
Todas essas coisas, boas e ruins que acabam sendo boas por que vão somar no aprendizado da vida, representam a convivência da universidade familiar, que vai nos acrescentar mais que qualquer mestrado ou doutorado.
É a verdadeira graduação da vida. Com diploma para emoldurar e exibir na parede da vida – quando os cabelos branquearem, as articulações começarem a doer e a urina começar a cair fora do vaso sanitário.
Fubá de milho torrado e pilado
Mas, como focar nesse “remake” da vida deixando de lado o que de bom enfeitou nosso viver?
Alguém conhece uma criança que, mesmo vivendo dificuldades, não tenha sido feliz?
E, assim sendo, quem teria inventado a frase: “a gente era feliz e (não) sabia”?
Eu fui feliz, sim senhor – mesmo enfrentando ao longo de oitenta anos os problemas que enfrentei. Mas, me atreveria a olhar para trás e repetir muita coisa.
Roubar a rapadura da Vovó (que, no fundo, era minha também), guardada numa cumbuca debaixo de sete chaves – única e exclusivamente para adoçar o “nosso café”.
Ajudar a socar no pilão o milho torrado para fazer fubá, pôr na boca uma mancheia e tentar falar: “minha Tia é boa porque pode”!
Pois é. Ser feliz é fazer e ver acontecer coisas simples, que, às vezes, apenas nós entendemos.
E, sinceramente falando, esse é o somatório da vida. É o que significa viver e ser feliz.
Café adoçado com rapadura, com farinha e carne seca, debaixo do carro de boi, nas viagens longas. Que maravilha, seo moço, rsrsrs.
Beni, minha Avó fazia assim: uma lata dependurada num arame, como se fora um varal. Botava água para ferver, acrescentava os pedaços de rapadura, provava se estava “no ponto de adoçamento” e só depois colocava o pó do café. Deixava ferver um pouco e coava. Nada melhor!
Obrigado pela crônica lírica, mestre Zé Ramos.
Está nota 10 o contexto em que ela foi formulada: farinha e carne seca.
OBRIGADO mESTRE cIÇO. dEUS ESTARÁ sempre conosco a nos incentivar.
Parabéns pela belíssima crônica, querido José Ramos. Toda infância, com poucas exceções, tem um quê de magia e deixa muita saudade.
Seu texto prende a atenção do leitor do começo ao fim. É como se estivéssemos revivendo a nossa própria infância. As mazelas eram comuns a todas as crianças peraltas. Eu vivia com os pés cheios de frieira, por entrar no chiqueiro do porco com os chinelos na mão, pisando na lama, para saborear pinha, trepada na pinheira. Minha mãe recomendava que eu não tirasse as chinelas, mas era em vão.
Adorei seu texto!!!
Grande abraço e saudades! Muita saúde e Paz!
Violante, fomos felizes, sim. E sabíamos disso. O prazer de ficar descalça, subir na pinheira, com certeza é melhor que deitar no sofá e dedilhar o celular, né não?
Era mil vezes melhor do que hoje, querido José Ramos.
Ataulfo Alves estava certo, ao compor esta música:
Meus Tempos de Criança
Ataulfo Alves
Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança
Aos domingos, missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ai, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Miraí
Que saudade da professorinha
Que me ensinou o beabá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?
Eu igual a toda meninada
Quanta travessura que eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia
Grande abraço!
Exatamente amiga! Ainda hoje pratico algumas coisas que aprendi quando criança: ir à Missa aos domingos e, lembro sempre, da minha primeira namorada – aquela de frequentar a casa, de sentar, dar e receber respeito, beijar, rir e conversar. Coisas que construíram a minha vida e me fizeram o adulto de hoje.