JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Quem imagina que a vida na roça é só “tudo de bom”, vive enganado. Claro que é um lugar de gente correta, que vive do trabalho e tem como direção o caminho traçado, definido e iluminado por Deus.

E hoje, domingo, não foi diferente. Domingo para quem nasce e faz questão de continuar vivendo na roça, só é domingo por conta da missa, dia do encontro formal com os amigos e com Deus.

Viver na roça, é usufruir do que Deus lhe dá.

Fui à missa. Rezei. Lembrei de pedir à Deus por alguns tantos que, a meu julgamento, precisam de Deus – mas, claro que Deus sabe mais que eu quem precisa d´Ele.

A manhã foi completada com o atendimento a uma mania. Reunir debaixo daquele juazeiro onde todos têm algo para contar – e para vender. Carne de bode, carne de porco, miúdos de porco, tripas de porco e carne de sol bovina.

Eu fui vender o que tinha: capote, ovos de capota, seis patos e nenhuma pata – obedeci a Vovó, que não permitia que vendêssemos fêmeas de nenhuma ave. Vendi quase todos – os ovos, um homem com ares de morador da cidade grande comprou todos. Garantiu que consumiria todos em gemadas.

A volta para casa e o almoço da Vovó. Hoje sei que o nome daquela carne é “chambaril” – mas Vovô achava a melhor comida do mundo para um domingo. Gostava de “bater o tutano” da canela, misturar com feijão de corda, rapadura e farinha. Era assim que entendia que teria forças para o trabalho na segunda-feira.

O almoço e a soneca na rede armada na latada frontal da casa. Sono reparador que só terminaria por volta das quatro da tarde para o café com beiju de massa de farinha. A volta para a rede na latada e o olhar contemplativo para o nada, que, de repente, mostrava os desenhos que o vento fazia com as nuvens. Como se essas estivessem mais próximas que o amanhã do Vovô.

A claridade do domingo estava indo embora. Cedia lugar à lugubridade noturna com a orquestra sinfônica das cigarras e de muitos grilos.

Repentinamente, o silêncio invadiu todos os espaços vazios dos sons possíveis. As cigarras pararam de cantar, e, seguidas pelos grilos, procuraram abrigo.

A chuva em preparativos para a poesia dos pingos

Abrigo de que?

Do vento. Da ventania. Da tempestade que chegava aos poucos, calando todos os taróis, bumbos, tambores e pianos usados pelas cigarras para nos impor aquela sonoridade da “boquinha da noite”.

A ventania amainou, mas trouxe consigo a chuva. De início, apenas uma neblina, que, aos poucos se transformava numa chuva mais grossa e pesada.

As cigarras e os grilos estão sempre certos. São parte da Natureza. Da Natureza do tempo, da Natureza do mundo, da Natureza de tudo e da Natureza da vida. São, por assim dizer, protagonistas do muito que existe.
A chuva amainou. Diminuiu, mas as cigarras e os grilos continuavam envoltos nos seus lençóis e nos seus abrigos, onde provavelmente passariam aquela noite.

Eis que, tão repentinamente como chegara, a chuva forte estava indo embora – mas, poeticamente, trouxera o seu Pablo Neruda e a sua Cora Coralina, fazendo poesia.

O pingo e a poesia de Biaman Prado

Ali, pertinho de mim, a chuva calou as cigarras e os grilos que provavelmente só voltariam a cantar na noite seguinte, com a mesma sonoridade, nos embevecendo com aquela conhecida sinfonia que nos encanta, mesmo nos irritando.

No lugar do som estridente do grilo e da frivolidade das cigarras, a poesia dos sons era escrita, agora, por cada pingo que continuava premiando nossa sensibilidade, quando caía das telhas e percorriam uma distância de três metros no caminho da mais pura beleza.

E, Deus é tão bom, que nos permitia acompanhar a trajetória de cada pingo, e ainda nos permitia enxergar o quanto de poesia havia em cada um daqueles pingos, que também são protagonistas da Natureza.

OBSERVAÇÃO: Biaman Prado é um amigo, Fotógrafo, autor da foto do pingo poético.

4 pensou em “AS CIGARRAS, OS GRILOS E A POESIA DE CADA PINGO D’ÁGUA

  1. Parabéns pela bela crônica, querido Escritor José Ramos!
    De repente, me vi num tempo encantador, quando a maldade nem tinha nascido.
    A vida na roça é um paraíso. Poder desfrutar das coisas de Deus, longe do barulho da cidade e da poluição sonora, é uma bênção.
    Descrever a magia da chuva, o mistério dos pingos d’água, das cigarras e dos grilos, é uma forma de oração.

    Grande abraço, amigo! Muita saúde, alegria e Paz!

    • Violante, finalmente terminaram as férias (infelizmente para você, que volta ao batente diário) e você volta a dar o prazer da visita. Grato!

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