Quem imagina que a vida na roça é só “tudo de bom”, vive enganado. Claro que é um lugar de gente correta, que vive do trabalho e tem como direção o caminho traçado, definido e iluminado por Deus.
E hoje, domingo, não foi diferente. Domingo para quem nasce e faz questão de continuar vivendo na roça, só é domingo por conta da missa, dia do encontro formal com os amigos e com Deus.
Viver na roça, é usufruir do que Deus lhe dá.
Fui à missa. Rezei. Lembrei de pedir à Deus por alguns tantos que, a meu julgamento, precisam de Deus – mas, claro que Deus sabe mais que eu quem precisa d´Ele.
A manhã foi completada com o atendimento a uma mania. Reunir debaixo daquele juazeiro onde todos têm algo para contar – e para vender. Carne de bode, carne de porco, miúdos de porco, tripas de porco e carne de sol bovina.
Eu fui vender o que tinha: capote, ovos de capota, seis patos e nenhuma pata – obedeci a Vovó, que não permitia que vendêssemos fêmeas de nenhuma ave. Vendi quase todos – os ovos, um homem com ares de morador da cidade grande comprou todos. Garantiu que consumiria todos em gemadas.
A volta para casa e o almoço da Vovó. Hoje sei que o nome daquela carne é “chambaril” – mas Vovô achava a melhor comida do mundo para um domingo. Gostava de “bater o tutano” da canela, misturar com feijão de corda, rapadura e farinha. Era assim que entendia que teria forças para o trabalho na segunda-feira.
O almoço e a soneca na rede armada na latada frontal da casa. Sono reparador que só terminaria por volta das quatro da tarde para o café com beiju de massa de farinha. A volta para a rede na latada e o olhar contemplativo para o nada, que, de repente, mostrava os desenhos que o vento fazia com as nuvens. Como se essas estivessem mais próximas que o amanhã do Vovô.
A claridade do domingo estava indo embora. Cedia lugar à lugubridade noturna com a orquestra sinfônica das cigarras e de muitos grilos.
Repentinamente, o silêncio invadiu todos os espaços vazios dos sons possíveis. As cigarras pararam de cantar, e, seguidas pelos grilos, procuraram abrigo.
A chuva em preparativos para a poesia dos pingos
Abrigo de que?
Do vento. Da ventania. Da tempestade que chegava aos poucos, calando todos os taróis, bumbos, tambores e pianos usados pelas cigarras para nos impor aquela sonoridade da “boquinha da noite”.
A ventania amainou, mas trouxe consigo a chuva. De início, apenas uma neblina, que, aos poucos se transformava numa chuva mais grossa e pesada.
As cigarras e os grilos estão sempre certos. São parte da Natureza. Da Natureza do tempo, da Natureza do mundo, da Natureza de tudo e da Natureza da vida. São, por assim dizer, protagonistas do muito que existe.
A chuva amainou. Diminuiu, mas as cigarras e os grilos continuavam envoltos nos seus lençóis e nos seus abrigos, onde provavelmente passariam aquela noite.
Eis que, tão repentinamente como chegara, a chuva forte estava indo embora – mas, poeticamente, trouxera o seu Pablo Neruda e a sua Cora Coralina, fazendo poesia.
O pingo e a poesia de Biaman Prado
Ali, pertinho de mim, a chuva calou as cigarras e os grilos que provavelmente só voltariam a cantar na noite seguinte, com a mesma sonoridade, nos embevecendo com aquela conhecida sinfonia que nos encanta, mesmo nos irritando.
No lugar do som estridente do grilo e da frivolidade das cigarras, a poesia dos sons era escrita, agora, por cada pingo que continuava premiando nossa sensibilidade, quando caía das telhas e percorriam uma distância de três metros no caminho da mais pura beleza.
E, Deus é tão bom, que nos permitia acompanhar a trajetória de cada pingo, e ainda nos permitia enxergar o quanto de poesia havia em cada um daqueles pingos, que também são protagonistas da Natureza.
OBSERVAÇÃO: Biaman Prado é um amigo, Fotógrafo, autor da foto do pingo poético.
José Ramos, parabéns pela maravilhosa crônica.
Valter, obrigado. Volte sempre que desejar, ou quando estiver chovendo!
Parabéns pela bela crônica, querido Escritor José Ramos!
De repente, me vi num tempo encantador, quando a maldade nem tinha nascido.
A vida na roça é um paraíso. Poder desfrutar das coisas de Deus, longe do barulho da cidade e da poluição sonora, é uma bênção.
Descrever a magia da chuva, o mistério dos pingos d’água, das cigarras e dos grilos, é uma forma de oração.
Grande abraço, amigo! Muita saúde, alegria e Paz!
Violante, finalmente terminaram as férias (infelizmente para você, que volta ao batente diário) e você volta a dar o prazer da visita. Grato!