A PALAVRA DO EDITOR

Clementina de Jesus da Silva nasceu em 7/2/1901, em Valença, RJ. Cantora dotada de um timbre de voz potente e ancestral e um repertório de músicas afro-brasileiras tradicionais, que efetivou a religação do Brasil à África. Nascida num reduto de “jongueiros”, cuja dança e cantos exerceram forte influência na formação do samba carioca, foi descoberta como intérprete destas canções tradicionais aos 62 anos e tornou-se patrimônio da música popular brasileira. É reconhecida como o elo perdido entre a cultura negra brasileira e a África Mãe.

Filha da parteira Amélia de Jesus dos Santos e do capoeira e violeiro Paulo Batista dos Santos, mudou-se para a capital aos 8 anos e estudou no Orfanato Santo Antônio. Desenvolveu uma crença católica junto com rezas em dialeto africano, constituindo-se num exemplo típico do sincretismo religioso vigente no País. Vivendo no bairro de Oswaldo Cruz, participou do grupo de “Folia de Reis” do mestre João Cartolina, que levou-a para o bloco “As Moreninhas das Campinas”, embrião da Escola de Samba Portela. Nas décadas de 1920, 30 e 40 atuou no carnaval como diretora da Escola de Samba Riachuelo, nos primeiros anos da Portela e da Mangueira. Aí tomou parte nas rodas de samba e conheceu boa parte dos sambistas tradicionais, como Paulo da Portela, Claudionor e Ismael Silva.

Sua voz chamava a atenção de todos e Heitor dos Prazeres fez-lhe um convite para ensaiar suas pastoras. Por essa época trabalhava como empregada doméstica e cantava sem intenção de se tornar profissional. Em 1940 casou-se com Albino Pé Grande e foi morar no Morro da Mangueira, ampliando as rodas de samba. Sua carreira profissional deu-se por acaso, quando o compositor Hermínio Belo de Carvalho encontrou-a numa festa da Penha, em 1963, e ficou fascinado pela autenticidade de seu estilo e voz. Pouco depois deu-se um reencontro na inauguração do restaurante Zicartola e firmaram uma programação de ensaios para o espetáculo “Rosa de Ouro”, em 1965. Trata-se de um show que ficou na história do samba carioca, com a participação de Aracy Côrtes e diversos sambistas, entre os quais uns iniciantes como Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Clementina saiu dali consagrada pela crítica e exaltada pelo público.

Em 1966 participou do Festival de Arte Negra, em Dakar (Senegal) e teve o palco invadido para abraçá-la. No mesmo ano representou a música brasileira no festival de cinema de Cannes, onde ganhou um buquê de flores de Sophia Loren. Ainda no ano, gravou seu primeiro disco intitulado “Clementina de Jesus”. Teve apenas 5 discos-solo gravados e nunca foi um grande sucesso de vendas, devido talvez ao fato de boa parte de suas gravações serem temas folclóricos ou sua voz não se enquadrar nos padrões estéticos tradicionais. Participou de diversos discos dos grandes intérpretes da MPB, que faziam questão de ter sua voz registrada em seus álbuns. Despertou a africanidade em João Bosco e lançou Martinho da Vila como mestre do samba e partido-alto. Ao vê-la cantar Milton Nascimento exclamou: “Era a África na minha frente”. O maestro Francisco Mignone definiu-a como um “fenômeno telúrico exclusivamente brasileiro”.

Toda a nata da MPB queria estar ao seu lado, incluindo alguns oportunistas que se aproveitavam de sua imagem. O fato chegou a gerar uma crítica do jornalista Artur da Távola, que publicou na sua coluna n’O Globo. : “Clementina é importante por ser uma deusa do Brasil real. Para o Brasil oficial, ela é comemorada como raridade folclórica, espécie de mito que serve aos propósitos o Brasil real, propagandísticos ou justificadores da aparente paz social. Mas, para ela é a própria capacidade de sobreviver do povo”. Mas também contou com nomes expressivos ao seu lado, como Pixinguinha e João da Baiana, participando do antológico LP “Gente da Antiga”, produzido por Hermínio Bello de Carvalho, em 1968.

Em vida recebeu várias homenagens, entre elas a do então Secretário de Cultura do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, no Theatro Municipal, em agosto de 1983. Foi a primeira vez que o samba entrou naquele vetusto ambiente. Darcy foi acusado de por em risco o templo da música erudita e contou em sua autobiografia: “Frequentadores habituais do teatro se danaram, apoiados pela imprensa, contra a ousadia de levar uma cantora negra, pobre e favelada para cantar no seu reduto elitista. Esses idiotas se esbaldavam quando o teatro se abria para qualquer cantorzinho francês”. Junto com ela no palco ”vestida como uma rainha, beliscava os braços e gritava: ‘É verdade, professor! Não estou sonhando’”. Elizeth Cardoso, Nelson Cavaquinho, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, João Nogueira entre tantos confirmavam: “É tudo verdade”.

No mesmo ano foi uma das homenageadas pela Escola de Samba Beija Flor no enredo “A grande constelação das estrelas negras”, campeã naquele ano. Em 1985 recebeu do governo francês, através do Ministro da Cultura Jack Lang, a “Comenda da Ordem das Artes e Letras”. Foi a última homenagem recebida em vida. Não resistiu ao 5º derrame e faleceu em 19/7/1987 aos 86 anos. Em 2013 foi apresentado o espetáculo musical “Clementina, cadê você?”, no Teatro Laura Alvim, considerado um dos melhores do ano. O título do espetáculo serviu de enredo para a Escola de Samba Tradição, em 2016.

No ano seguinte a escritora Janaina Marquesin junto com outros pesquisadores, após 6 anos de trabalho, lançou o livro “Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus” pela editora Civilização Brasileira. Em 2018 foi lançado o documentário “Clementina” pela Dona Rosa Filmes na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em 2021 seria homenageada pela Escola de Samba Mocidade Alegre, de São Paulo, com o enredo “Quelémentina cadê você?”, mas não foi possível devido a pandemia. Por enquanto aguardemos o carnaval chegar.

6 pensou em “AS BRASILEIRAS: Clementina de Jesus

  1. Prezado Mestre Brito.

    Desta vez você me surpreendeu de veras. Nunca esperava que um dia teria a oportunidade de ler um ensaio biográfico de uma das personalidades musicais, a meu ver, mais importantes na musica brasileira autêntica.

    Clementina foi um meteóro de brilho fulgurante que passou pelos céus da musica brasileira. Graças ao apoio e a inteligência do grande compositor Emilio Bello
    de Carvalho, que sempre esteve ao seu lado incentivando, aconselhando e
    dando todo o sei prestigiado apoio . O resultado foi que o reconhecimento da nossa Clementina, afinal apareceu e ela conheceu todo elogio e consagração possível, dentro da mídia e dos admiradores da verdadeira música brasileira, não só dentro das raizes afro musicais.

    Assisti aos espetáculos mencionado e posso afirmar que apos degustar o
    maravilhoso espetáculo ROSA DE OURO , Fiquei deslumbrado, pois quando a Clementina aparece no palco, este por mágica se ilumina resplandescente e
    o que vem a seguir é inesquecível. Confesso que fiquei embasbacado. Nota-se
    que a Clementina não era a estrela principal, mas sim uma outra Joia do
    passado a renomada Araci Cortes ( que também merece um ensaio biográfico do mestre.) que nos encheu de musicalidade dos bons tempos e nostalgia para dar e vender.
    A nossa Clementina foi levada à europa para um espetáculo sobre a música brasileira e deu um show de qualidade. Deixou os franceses de boca aberta
    ao cantar trechos de ” A marselhesa ” em francês. Foi aclamada por aqueles
    babacas empolados, que pensam que somos índios analfabetos e não temos personalidades
    de grande gabarito, social , politico ou artísticos. Mais tarde ela recebeu uma
    comenda do governo francês.

    A partir do encontro do Emilio no restaurante ZICARTOLA ( na verdade uma espécie de pensão em um sobrado na Rua da Carioca . O Nome Zicartola é a junção do s
    nomes do compositor CARTOLA e sua mulher ZICA. Era um famoso ponto de encontro dos artistas brasileiros, principalmenbte àqueles ligados ao mundo musical.
    ( O Cartola, grande compositor, conheci muito bem, pois foi porteiro do
    edificio A NOITE, a onde ficava a RADIO NACIONAL e em cujo prédio no RJ
    trabalhamos por mais de dez anos.

    Militei muitos anos no reino musical, conheço e tive e ainda tenho como amigos
    inúmeros artistas, cantores principalmente, e sempre lamentei não ter conhecido
    pessoalmente esta mulher extraordinária, sem cultura, mas de uma inteligência
    fóra de série.

    Uma “ÍDALA, ” A quem eu tomo a benção humildemente.

    Obrigado mestre, por este presente de hoje.

  2. Mais uma vez, D. Matt, a testemunha ocular da história nos brinda com seu depoimento esclarecendo fatos e relatando acontecimentos presenciados.

    Fico ancho que só vendo, como diz nosso editor, com este comentário certificando o acerto da escolha de Clementina de Jesus para entrar no Memorial das Brasileiras.

    Gratíssimo Mestre D. Matt

  3. Professor, foi com muita satisfação que li seu relato sobre Clementina de Jesus, dona de uma das vozes mais marcante da negritude, que falava fundo dentro de nossa alma e fazia ferver o sangue da mãe África que corre nas veias da maioria do povo brasileiro. Junto com Doca e Geraldo Filme,( outro gigante da etnia negra), ela gravou o disco intitulado,” O Canto dos Escravos “, obra prima que deveria ser obrigatório para todos os amantes de musica e da história dos cativo no Brasil. Um abraço e um bom domingo.

  4. Os devem estar agradecidos pela indicação d’ Canto dos Escravos, recomendado como audição obrigatória.
    E eu agradeço pleo enriquecimento da biografia concisa apresentada.

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