MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

O primeiro artigo da nossa constituição diz “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Você votou em quem para diretor da ANAC? E da ANVISA? E da ANTAQ, tão importante no dia-a-dia do povo brasileiro?

Como é? Você não votou em nenhum deles? Então de onde “emana” o poder da ANVISA de dizer o que você pode comer e quais remédios pode ou não tomar? E como a ANAC determina até o peso da mala que você pode levar no avião? E porque a ANATEL mantém o mercado de telefonia fechado e restrito a três operadoras? Pois é, parece que o artigo 1º da constituição não vale muita coisa. As agências mandam no que querem, e o poder do povo não atinge seus diretores, que não podem ser demitidos antes do fim do mandato.

Não são só as agências que fazem isso. No judiciário não há ninguém eleito pelo povo. No ministério público muito menos. E mesmo no executivo e no legislativo, os tais representantes eleitos muitas vezes descobrem que pouco podem fazer diante da burocracia mantida pelos funcionários de carreira protegidos pelo corporativismo e por leis que podem ser legais, mas que não emanaram da vontade do povo.

Essa é a grande diferença entre os serviços oferecidos pela livre iniciativa (que alguns chamam de capitalismo) e os oferecidos pelo estado: na livre iniciativa, se você é mal atendido ou não gosta do produto ou do preço, você simplesmente procura outro fornecedor. Funciona assim quando você quer comer um pastel, comprar uma roupa, trocar sua TV ou cortar o cabelo. Mas quando se trata do estado, a coisa muda: o estado fornece serviços que você é obrigado a usar mesmo que não queira, por um preço que você não pode contestar, e sem a menor chance de reclamar para alguém caso o serviço seja ruim.

A boate que pegou fogo em Santa Maria e matou quase duzentas pessoas? Foi fiscalizada pelos “órgãos competentes” que disseram que estava tudo certo. Ninguém dos órgãos competentes foi punido.

As barragens que romperam em Brumadinho e Mariana? Foram fiscalizadas pelos “órgãos competentes” que disseram que estava tudo certo. Ninguém dos órgãos competentes foi punido.

Lembra do escândalo das carnes estragadas? Eram fiscalizadas pelos “órgãos competentes” que nunca viram nada de errado. A coisa só apareceu porque os envolvidos se desentenderam na divisão das propinas e um deles fez uma denúncia na polícia. Nenhum dos órgãos competentes sofreu qualquer sanção. As empresas continuam sendo obrigadas a usar os serviços do SIF.

No momento estão todos escandalizados porque o governo contratou a empresa do primo de um deputado e ex-secretário, e o resultado foi seis pessoas recebendo órgãos contaminados com HIV. Os funcionários da tal empresa já estão sendo presos. Mas e o governo, que é o responsável por essa contratação específica, e também é responsável pela fiscalização de todas as empresas? Alguém acha que alguém do governo vai sofrer alguma punição pelo caso? Talvez algum juiz determine que o estado deve “indenizar” as vítimas, o que será feito com o NOSSO dinheiro, e não com o dinheiro de quem fez a cagada.

Um outro exemplo? O setor elétrico é totalmente regulado e controlado pela ANEEL junto com Ministério de Minas e Energia e junto com Eletrobras e mais um punhado de empresas estatais. Quem se der ao trabalho de ler um edital de licitação para as concessões, que a mídia chama de “privatização”, vai constatar que o governo determina até o tamanho dos parafusos que a empresa privada deve usar. O nome mais apropriado para isso seria “contratação” ou “terceirização”, porque a empresa privada não tem nenhuma autonomia e simplesmente executa as diretrizes do governo.

Bem, nesse ambiente tão bem controlado e regulado pelo estado, uma concessionária, Amazonas Energia, começou a ter prejuízo e os órgãos competentes só perceberam quando a dívida passou dos 11 bilhões de reais. No mundo privatizado, quando uma empresa é mal administrada e tem prejuízo, quem se lasca é o dono. No mundo governamental, a idéia é diferente: a dívida será rateada entre todos os consumidores do país.

Acontece que uma empresa chamada Âmbar falou para a ANEEL que tem interesse em assumir a concessão e a dívida da Amazonas Energia (sendo ressarcida pelos consumidores, naturalmente, em suaves prestações mensais). Poucos dias depois da Âmbar entregar sua proposta, surgiu uma Medida Provisória que efetuava as mudanças burocráticas necessárias para viabilizar o negócio. Talvez interesse saber que a tal Âmbar pertence ao grupo J&F Investimentos, cujos donos são os irmãos Joesley e Wesley Batista, já ouviu falar?

Bem, o negócio não agradou a dois grupos que hoje atuam no mercado de energia e são credores da Amazonas: Termogás e BTG Pactual.

Uma característica interessante das agências reguladoras brasileiras é que, embora elas não tenham muita pressa em atender as necessidades do povo que paga os seus salários, elas são espantosamente empenhadas em defender os interesses de determinados empresários. Assim, nessa situação que tem a J&F de um lado e o BTG de outro, a ANEEL não consegue decidir se aceita o negócio ou não, e as votações de sua diretoria tem terminado empatadas em dois a dois.

A coisa se tornou tão enrolada que, quando a J&F conseguiu uma liminar que determinava a transferência do negócio para a Âmbar, a diretoria da ANEEL se reuniu para decidir se cumpriria ou não a decisão – reunião que mais uma vez terminou em empate. Veja o que declarou em seu voto o diretor Ricardo Tili: “Valendo-se de autonomia na tomada de decisões por parte da agência reguladora, e estando o agente público vinculado ao Princípio da Legalidade, não vejo como conciliar a decisão que obriga a agência a aprovar um plano claramente ilegal…”

É isso mesmo. Você andava indignado porque o STF se intrometia nas decisões do Congresso? Pois agora uma agência reguladora resolveu que tem “autonomia” e pode decidir se cumpre ou não decisões da justiça e se estas decisões são “legais” ou “ilegais”. Aliás, não é a primeira vez que alguém diz que as agências não precisam cumprir ordens da justiça porque suas decisões se baseiam em “aspectos técnicos”. Outra reclamação constante das agências é que o dinheiro delas depende do orçamento aprovado pelo Congresso; elas querem ter o direito de gastar quanto quiserem sem dar satisfação a ninguém.

Enquanto isso, o contribuinte dorme feliz, acalentado pela fantasia de que “todo poder emana do povo”.

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