ROQUE NUNES – AI, QUE PREGUIÇA!

Para Violante Pimentel

Chamava-se Apolônio Boaventura de Jesus, mas era mais conhecido como Apolônio Preá, ou apenas Preá. Matador de aluguel, conhecido pelo bom serviço que fazia na arte de despachar cristãos para a terra do além. Gabava-se do bom serviço que fazia: seu doutor! Tenho tirocínio e maestria no meu ofício. Faço serviço melhor que muito doutor médico com suas poções, sinapismos e beberagens, na minha arte.

Nascera em Cacimba do Mato Dentro nos idos tempos de antanho. Já molecote, bem puxado para o pardavasco entrou em quizília com um desafeto e passou o desinfeliz na lâmina de sua “Coqueiro”. Serviço de primeira. O vitimizado não teve tempo de dizer ai, antes de entregar a alma pra Deus, Nosso Senhor! Dessa rezinga de tempos de moleque investiu-se no cargo de matador de aluguel, e era bem pago pelos serviços prestados.

Com a fama de valente, de sujeito que não levava desaforos para casa, sentou praça em São José. Sua sala, naqueles tempos, pratrasmente de muitos verões, quando política se resolvia na bala e na ponta de faca, tornou-se cabo eleitoral, juiz, promotor, júri e carrasco daqueles a quem era encomendada morte matada. O cliente apresentava o nome, o tipo do sujeito e a espécie de morte. Preá, como todo bom servidor estipulava tabela de preço no ofício de sua arte, e ainda brincativo, preguntava para o cliente se tinha algum recado a mandar pro falecido de morte contratada e com firma passada em cartório.

Mas, deu também de apresentar ares de funcionário público de alto escalão. Coisa nanica, tipo surra de cipó de boi, ou mesmo de lâmina de fação, nem se dava o trabalho de pessoalmente despachar o corretivo. Mandava um de seus moleques qualquer fazer o serviço, pagava o jornal do trabalho subalternista e ia gozar licença prêmio na casa de sua amiga Maria Veludo.

Valente que só a peste, olhos de um verde claro que mais parecia caninana em noite de lua cheia, quando as bichas estão com o cio aberto, andava meio cambaio, pra lá e pra cá. Falava todo cacarejoso, de peito estufado, voz de entupir sala e saleta. Também era conhecido pelo seu educativismo com mulher moça e moça mulher. Pedia benção às senhoras cujas bocas muitos verões já haviam esquecido e era devocioneiro de José e São Lifôncio, apesar de não machucar piso de igreja pra mais de vinte anos.

Vivia em sua casinha na entrada de um capoeirão, criando galinha, cabra e porco, além de um roçado de aipim, feijão e milho. Era a sua mantença, fora os serviços de finadismo que dava conta quando contratado por algum figurão que queria se livrar de um desafeto, seja em briga de terra, de política, ou de qualquer outro assunto, como perda de donzelismo. Só não dava finalmência em ladrão de moça. Até elogiava o ladronismo do sujeito. Mesmo com ares superiores, não enjeitava nenhum serviço. Trabalho graúdo, desses de aparecer em gazeta de primeira página, dava de pessoalmente o serviço. Trabalho nanico, mandava algum dos afilhados, pois era padrinho de muitos moleques em São José, principalmente daqueles moleques cujos pais eram desconhecidos, ou tinham paradeiro incerto, ou daqueles filhos de moças de casas suspeitosas.

Bom caçador, gostava de ter em sua mesa, carne de alguma caça, fosse anta, tatu, ou mesmo onça, que, segundo os mais velhos da cidade era de muita sustança. Nas suas caças, sempre que trazia bicho mais graúdo, não se esquecia dos afilhados, ou dos velhos a quem sempre prestava algum ajutório. Naqueles dias bons, quando Preá caçava, os velhinhos tinham certeza de gosto de gordura na mesa.

Apolônio Preá, no entanto, tinha um segredo. Era temente de lobisomem, visage de menino pagão, ou qualquer abusão de noite trevosa, principalmente em noite de corisco, quando as lacraias de fogo de Nosso Senhor Jesus Cristo cortavam o céu de São José. Certa noite desabou uma tempestade na cidade, justo na hora que Preá voltava de um serviço de despachamento de um graúdo da política da cidade de Mocambos. Mal abriu a porta e aquela chama de corisco alumiu toda a sua casa. Nesse alumiar, Preá viu a figura de um menino comedor de terra que tinha virado anjo pra mais de vinte anos.

Sabedor de toda raça de encantado, de toda marca de visage, seja dentro de casa, em porta de cemitério, ou mesmo em estrada de chão, ao meio dia, horário mais apropriado para esses abusões e provocativismo do povo já pertencido ao barro do cemitério, encalistrou e sentiu um frio que correu da ponta da nuca, passado pelo cavername do peito e chegando no dedão do pé.

Tentou chamar alguém. Sua voz grossa de não respeitar nem sala de doutor médico, nem de desembargador jubilado saiu fininha, quase um sussurro, gaguejando um ora pro nobis aprendido nos seus verdes anos de menino quando um cura de Cacimba de Mato Dentro ensinou a ele e aos demais moleques, a garatujar o nome e algumas rezas em latim em homenagem aos santos de sua devocionice. Nem pernas Preá tinha mais. Só pensava na visage, quando sentiu um arrepio na carcunda e logo pensou em lobisomem. Mal acabou de pensar, sentiu uma mão grande e peluda tocar seu ombro e escorrer pelo espinhaço, até quase perto de suas partes subalternas.

Aí era demais. Nunca que um Apolônio Preá, matador de fama contada e cantada iria permitir tamanho sem-vergonhismo com sua pessoa. Tirou seu “Coqueiro” da cintura, chamou pelos santos de sua devoção e esfarinhou aquela mão que escorria pela sua cacunda a poder de “toma, safardana”. Quando avivou o pavio do lampião de querosene começou a rir do seu próprio medo. Na noite trevosa e cheia de vento, não reparou que havia deixado a vassoura de piaçava atrás da porta que, com o vento caiu e derrapou pela carcundinha do Preá, de alto a baixo.

6 pensou em “APOLÔNIO PREÁ

    • Boa Nonato. Escrevi este texto que acalentava há muito tempo e o dediquei à nossa amiga Violante Pimentel, pois sei que ela gosta de um invencionismo com o uso da Língua Portuguesa.

  1. Obrigada, grande cronista Roque Nunes, por me dedicar este saboroso texto “APOLÔNIO PREÁ”, o que me deixou muito honrada!
    Adorei a crônica, uma verdadeira aula de cultura popular, numa narrativa que prende o leitor do começo ao fim.

    Apolônio Boaventura de Jesus, conhecido como Apolônio Preá, ou apenas Preá, é um personagem hilário, que surpreende nas suas querências e sentimentos controvertidos.
    Como você disse:
    “Valente que só a peste, olhos de um verde claro que mais parecia caninana em noite de lua cheia, quando as bichas estão com o cio aberto, andava meio cambaio, pra lá e pra cá. Falava todo cacarejoso, de peito estufado, voz de entupir sala e saleta. Também era conhecido pelo seu educativismo com mulher moça e moça mulher. Pedia benção às senhoras cujas bocas muitos verões já haviam esquecido e era devocioneiro de José e São Lifôncio, apesar de não machucar piso de igreja pra mais de vinte anos.”

    Apesar da ferocidade que havia dentro dele, paralelamente, Preá era um homem cheio de medos, daquilo que ele não podia dominar, ou matar.
    “Era temente de lobisomem, visage de menino pagão, ou qualquer abusão de noite trevosa, principalmente em noite de corisco, quando as lacraias de fogo de Nosso Senhor Jesus Cristo cortavam o céu de São José.”

    Na verdade, Preá morria de medo de assombração, relâmpago e trovão.
    E foi assim que,”certa noite desabou uma tempestade na cidade, justo na hora que Preá voltava de um serviço de despachamento de um graúdo da política da cidade de Mocambos. Mal abriu a porta e aquela chama de corisco alumiu toda a sua casa. Nesse alumiar, Preá viu a figura de um menino comedor de terra que tinha virado anjo pra mais de vinte anos.” Ficou assombrado e “sentiu um frio que correu da ponta da nuca, passado pelo cavername do peito e chegando no dedão do pé”.

    Nessa hora, a brabeza desapareceu, dando lugar a um homem frouxo e medroso.
    Ficou sem voz, não sentia as pernas, e, de repente, sentiu uma mão grossa lhe alisando as costas, descendo até as “partes subalternas.”
    Cabra de peia, brabo, matador por vocação, Preá não dava valor à vida dos outros, e mandava alguém pastar no inferno com a maior facilidade.
    Mas, na noite escura e chuvosa, com relâmpagos e trovões, Preá fraquejou. Tirou da cintura sua arma com o intuito de matar o atrevido que alisava sua cacunda e estraçalhou a vassoura de piaçava que estava nas suas costas, levada pela ventania. A desmoralização que ele estava temendo estava longe de acontecer.

    Ainda estou rindo com este texto! Parabéns, amigo Roque e obrigada pela consideração!

    Bom final de semana!

    • Violante…. foi o maior prazer não só em escrever, mas ruminar cada palavra do texto para depois pinchá ele no papel. Você merece esse e muitos outros. Grato pelas palavras doces.

  2. Eita, Roque: cabra sacudido da moléstia. Você é minha mina de ouro do linguajar camoniônico, de onde sempre busco jóias para compreender e falar do/ao mundo. Parabéns pelo alcance de seu conhecimento. Um grande abraço.

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