Meu pai não foi nenhum leitor de clássicos da literatura nacional ou universal. Mal sabia as quatro operações matemáticas que memorizou ouvindo dos feirantes carpinenses mais letrados soprarem-lhe ao ouvido. Era um autodidata nas ciências exatas e biológicas. Adorava a natureza. Era incapaz de matar um pássaro.
Meu pai nunca ouviu falar de Fernando Pessoa, Gabriel Garcia Marques, Machado de Assis, Jorge Amado, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freire, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Pinto do Monteiro, etc. e tal, mas ouvia Luiz Gonzaga, e onde quer que estivesse, sozinho, ou limpando mato, plantando milho, batata, tomate, melancia, macaxeira, ou cuidando das vacas leiteiras, assoviava “A Triste Partida” do genial poeta Patativa do Assaré, musicado por Luiz Gonzaga.
Meu pai nunca ouviu falar do cineasta humanista Akira Kurosawa, um do mais importante, brilhante e influente diretor da história do cinema japonês, sendo premiado tardiamente em 1989 com o Oscar pelo conjunto de sua obra cinematográfica, mas possuía um senso de altruísmo qual o cineasta que muitas vezes impressionava minha mãe, quando na nossa casa aparecia um estranho, um andarilho, um circense com fome, e ele nunca lhes negava nada, além de oferecer-lhes um prato de comida e dar-lhe uma feira com todos os produtos cultivados no sítio.
No “Sítio São Francisco”, depois de sofrer por mais de dez anos de seca braba, papai “inventou de construir” uma barragem com tijolos adobes, pois “não queria mais ficar esperando pelos ‘milagres’ do céu com a volta da chuva para regar as lavouras e dar água aos animais.” “Sofrer não dar e tendo os recursos, pior!” – dizia com naturalidade.
Mandou cavar uma barragem de quinze metros de profundidade por trinta de comprimento e trinta de largura, no ribeirinho que passava nos fundos do sítio. Todos os moradores donos das terras confinantes, dependentes da Embrapa, diziam que papai estava ficando louco com a construção da represa d’água. “Iria alagar tudo e prejudicar os sítios dos vizinhos” – diziam. Papai nunca deu ouvido às críticas e tocou o barco.
Aos troncos e barrancos papai concluiu a “obra”. Veio a chuva e encheu a barragem que sangrou. Não prejudicou os vizinhos como esperavam alguns malfazejos. Papai ficou satisfeito. Os vizinhos também. Mas quando veio novamente a seca os vizinhos ficaram apavorados com as lavouras e plantas secando e os bichos morrendo de sede. Papai, que possuía um coração maior do que a bondade, no dizer de mamãe, ofereceu-lhes a água da barragem e os vizinhos faziam filas como retirantes em busca da água do açude. Mas nunca aprenderam a lição de construir uma barragem também nos seus sítios, tomando o exemplo de papai para deixar de sofrer por falta d’água e incomodar os vizinhos!
Ao ponto de o Velho sempre comentar com mamãe:
– Quando esse povo vai aprender que só se represa a água caída do céu quando se constrói barragem?
Papai era um homem de prioridades!