A PALAVRA DO EDITOR

Era carnaval, carnaval naqueles velhos tempos, a gente jovenzinho, vocês nem tinham nascido ainda, e só queríamos saber de beber, pular e, não era proibido, cheirar lança-perfume.

Além disso, o objetivo inconfessado (e posso dizer que não existia ainda, o politicamente incorreto) era caçar mulheres.

Na verdade, não era necessariamente naquela ordem que eu disse antes, mas posso organizar assim: beber, cheirar lança, pular e flertar com as garotas, para o que fosse possível, em encontros fortuitos de uma noite.

Quando digo pular é porque era pular mesmo. Nada de dança comportada, quando a banda tocava parece um para-para-para-para-fuso sambando dentro do salão o povo enlouquecido virava parafuso, pulando e girando, se esbarrando, às vezes se esparramando pelo chão.

O tubo de lança-perfume à mão não servia só para a brincadeira de cheirar – sim, era uma brincadeira, só nos quatro dias de farra – também era para jogar nas costas suadas das meninas, que davam gritinhos de arrepio com o fio gelado no meio do calor abrasador e viravam os olhos para ver se o atrevido lhes agradava.

Também servia para jogar nos olhos dos amigos. Ardia demais. Amigos, amigos, jato de éter nos olhos à parte.

A quarta-feira de cinzas já ia se aproximando. Naquela época era sagrado : à meia-noite acabava tudo, como por encanto, parecia que iríamos virar abóboras se continuássemos a festa. A música parava e os que aguentaram até ali iam embora.

Foi quando a vi. Eu mal podia acreditar. A tinha perdido no carnaval passado, ali, naquele mesmo lugar. Nosso encontro fora rápido como um raio. Há um ano nos olhamos, nos apaixonamos e seu pai a foi arrastando pelo fim do baile, entre confetes e serpentinas.

Agora, lá estava ela, dançando como uma deusa, em cima da mesa, fantasiada de odalisca, brilhando em purpurinas, os lábios vermelhos de batom.

Ela me viu, pulou da mesa e correu para mim. Saímos abraçados, dançando, enquanto a música contava a história do confete, pedacinho colorido de saudade, ai, ai, ai, ai, ao te ver na fantasia que usei, confete, confesso que chorei.

Uma parada, no meio do salão, escondidos na multidão, e um beijo longo, apaixonado, nos embriagou. O amor se fez, uma paixão que eu não podia acreditar.

A orquestra parou de tocar. Meia-noite. Enquanto nos olhávamos nos olhos os pares foram se afastando, seu pai a pegou pelo braço e a levou, de novo.

Eu fiquei parado, igual bobo, olhando enquanto ela se afastava também olhando para mim.

Um ano se passou, não consegui descobrir nada a respeito dela, quem era, onde morava, nem seu nome eu sabia.

Abri a caixinha, dentro dela o confete que saiu do seu rosto e se colou na minha boca quando a beijei.

Eu o senti na hora, peguei e guardei, como se guarda um tesouro, aqui está ele.

Quanto eu chorei, chorei porque lembrei o carnaval que passou, aquela odalisca que comigo brincou… ai, ai, confete, saudade do amor que se acabou.

Um amor assim não pode se acabar. Amanhã é carnaval, sei, tenho certeza de que ela estará, me esperando. Nós nos encontraremos, nos daremos as mãos, nos abraçaremos, trocaremos longos beijos e eu não mais deixarei que ela se vá. Juro que tive muito medo de que não voltaria a vê-la.

Amanhã. Amanhã é carnaval. E tudo aconteceu. Faz muito tempo.

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  1. Goiano!
    O que foi isso, macho véi?
    Torci tanto para um final feliz. O mesmo que ainda não veio.
    Porém, o adágio popular tem nos ensinado desde sempre: enquanto há vida, há esperança.
    Uma terça-feira de carnaval começará depois amanhã, e os tempos são outros.
    Boa sorte dessa vez.

    • Jesus de Ritinha de Miúdo, talvez, só talvez, os amores não realizados sejam os mais ardentes e duradouros.
      Fica sempre presente a esperança.
      Amanhã, como sabes, terá de ficar adiado por mais um ano: – Não vai ter carnaval.

  2. Retrato de tempos idos e vividos…
    Eram as mais venturosas peripécias, que geralmente começavam ao soar das primeiras clarinadas, ao meio dia do sábado (era uma realidade. Naqueles tempos os expedientes de trabalho, mesmo no serviço público e bancário, incluíam a manhã desse dia), quando muitos de nós, ainda engravatados, tomávamos os primeiros goles de chopp, recebíamos o tradicional batismo de talco e, assim, dávamos início a uma “curtição” que alcançava a quarta-feira ingrata, cuja manhã era dedicada à cura da ressaca, para lépidos e fagueiros enfrentarmos os expediente malvado que se iniciava ao meio dia.
    Armas ensarilhadas, aguardemos o próximo embate.

  3. Sabe, Goiano, esses amores de carnaval são o que mais próximo se chega do idílio romântico vivamente matizado por uma luxúria sagrada, dionisíaca mesmo.
    Também tive o meu encontro no salão com a mesmíssima personagem odalisca interpretada, então, por uma paquerinha da época.
    A coisa evoluiu até os jardins do clube… mas, em meio aos amassos, o pai dela também chegou e a levou.
    Dela ficou o perfume, o suor perfumado, diga-se, e a lembrança da pele mais suave, da carnadura mais firme, do hálito mais límpido, dos cabelos mais cheirosos, enfim, uma miríade de sensações exacerbadas pelo delírio de uma noite de carnaval.
    E a cena da dolorosa separação, que seguiu-se a frustação da saciedade do desejo que já me possuía por inteiro, sempre me vem a memória quando escuto/relembro o forrozão pé-de-serra Jardim do Amor, do consagrado Trio Nordestino:

    “Tava eu e ela só, no jardim do amor
    Eu beijando ela, quando o pai dela chegou”…

    Evoé!
    ****

    • Saniasin, estás revelando um suave cronista.
      Ao mesmo tempo, me fazes uma dura confissão, a de que paqueraste a mesma gatinha que eu! E que aquele pai ciumento a tirou também de ti!
      Eu sou saudosista, mas dos bons, isto é, não me perco no passado, mas o aprecio como se fosse hoje.
      Com frequência revivo minha infância, minha adolescência e minha juventude com nostalgia e alegria de ter vivivo tanta coisa boa.
      Um arrependimento aqui e ali, a necessidade de receber um ou outro perdão, hoje ou na eternidade, sem que isso me obscureça as luzes do passado.
      Por incrível que pareça, sempre é tempo e esperança é vida.
      Interessante o “evoé”.
      Eu ouvia essa palavra e às vezes a frase “evoé, momo!”.
      Nunca procurei saber o que é.
      Hoje, resolvi a curiosidade:
      “Evoé
      Interjeição
      Grito festivo com que as bacantes evocavam Dioniso (Baco, para os romanos)”.

  4. Obrigado, Adônis! Vou seguir teu conselho!
    Até porque as coisas estão tomando seu rumo por si próprias e já não estão mais precisando de mim.
    Vou me dedicar aos contos, às crônicas, à composição, à música.
    E ser feliz!

    • Vossa Eminência na resposta ao professor escreveu ….músicas ?
      Atende a pedidos ? Bom anos atrás pedi a sua irmã que cantasse a musica Você , que poderia ter sua parceria vocal.
      Agora se puder arrume uma parceira , que tal Patrícia Tinoco e cante . De lambujem cante também a música Vê . São pérolas .

  5. Joaquim Francisco, se bem que hoje as distâncias representam obstáculo menor, a Patrícia Tinôco tá lá na França, fazendo programações musicais com o meu parceiro Célio, cantando coisas minhas e de outros.
    Quando eu for à França, assim que o Euro chegar a R$ 2,50, pretendemos fazer algumas coisas juntos.
    Você, aquela com o Tim Maia? Muito legal.
    Vê, não estou sabendo qual é. Dá uma dica aí.

    • Você : Dick Farney & Norma Benguell
      Vê ou Preciso aprender a ser só : Os Cariocas
      Todas interpretações foram ótimas mas as acima marcaram mais, ao menos para mim.

      • Volte aos velhos tempos de ti , e para a atlética mina que pulou da mesa cante a música do filho do Dorival Caymmi que Evinha gravou até em japonês ‘ Bye Bye Ceci ‘ . A Besta Fubana Records gravará.

  6. Quando digo pular é porque era pular mesmo.

    Como hoje estou muito adônico, sigo o relator:

    Goiano, a quem muito amo, dentre os incontáveis dons de que és possuidor, este é um dos mais maravilhosos.

    Esta é a tua praia!

    Lembre-se que TODOS os corações são vermelhos porque assim são feitos. Vermelho é apenas uma cor entre tantas… Os que lucram com a política o fazem apenas pelo vil metal, JAMAIS pelo bem maior de qualquer POVO.

    Sua genialidade não pode ser colocada ao serviço de pessoas tão pequenas como as que se aventuram por votos fantasiados de PROBOS E ÍNCLITOS SERES QUE são o que são, NADA MAIS … Gastaria Sancho um caminhão de impropérios para adjetivar nossos animais políticos.

    Beijão de Sancho e até sempre.

  7. Sancho Pança, tua presença enche de cores vermelhas os nossos corações verde-amarelos.
    Agradeço demais tuas palavras e podes estar certo de que estou seguindo todos os sábios conselhos de afastar-me da política para dedicar-me às artes, inclusive fazer artes. E manhas.
    Abraço fraterno e até, até e até sempre, aqui e acolá.

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