FERNANDO ANTÔNIO GONÇALVES - SEM OXENTES NEM MAIS OU MENOS

Recomendo sempre aos meus ex-alunos de graduação e pós-graduação que permaneçam antenados com os fatos históricos dos últimos tempos, nacionais e estrangeiros, favorecendo uma criticidade cidadã que os libertará integralmente dos “ismos” ideológicos, econômicos, sociais, militares e religiosos que anestesiam e mascaram comportamentos despropositados, ensejando estupidificações que mentais aviltam a condição humana.

Muitos deles ainda desconhecem, por comodismo cognitivo, os procedimentos primeiros que propiciaram as atrocidades cometidas, no século passado, pelos nazistas que dominaram a nação alemã em 1933 com a vertiginosa ascensão do alucinado Adolf Hitler, habilmente explorando os ontens históricos que humilharam a Alemanha no pós guerra 1914-1918, culminando no incêndio do Reichstag, em 27 de fevereiro de 1933, favorecendo, no dia seguinte, a edição de um decreto que abolia a liberdade de opinião, o segredo epistolar, a inviolabilidade dos domicílios, permitindo detenções sumárias por razões de segurança nacional, milhares de livros sendo queimados em praça pública, a 10 maio do mesmo ano.

Mas o que mais me impressiona nos encontros é o desconhecimento quase completo sobre a construção dos procedimentos criados pela mente doentia de Hitler para o extermínio dos judeus, culminando na criação de guetos, logo após o ataque nazista à Polônia, em 21 de setembro de 1939, cada gueto com seu Judenrat (conselho judaico), responsável pela execução das ordens do Reich. Em abril de 1940, Hitler implementaria a operação T4, eutanásia dos doentes mentais e portadores de deficiências, iniciativas que desaguariam na Shoa, a “solução final”, apenas na Polônia vitimando 3 milhões de hebraicos irmãos nossos.

No III Reich, foi na cidade de Lódz, na Polônia, que se estabeleceu o segundo maior gueto para judeus, transformado em expressivo centro industrial fornecedor de suprimentos essenciais para o regime de então. Dada sua notável produtividade, o Gueto de Lódz foi preservado até agosto de 1944, quando sua população foi transferida para Auschwitz.

Recentemente, o livro Os Destituídos de Lódz, da Companhia Das Letras, 2012, uma mescla de romance social e análise do Holocausto, narra a história daquela cidade transformada em gueto e administrada por Mordechai Chaim Rumkowski, “figura que, ainda hoje, mas de meio século depois da sua extinção definitiva, permanece um enigma”. O autor do livro, Steve Sem-Sanderg, a partir de uma documentação exaustiva, analisa a administração de Rumkowski, até hoje motivo de calorosos debates entre os historiadores da Shoah: um colaborador dos nazistas ou alguém que, com astúcia, prolongou a sobrevivência de seu povo?

Através de uma leitura imperdível, toma-se contato com personagens inesquecíveis, muitos deles sepultados como “auto-homicidas”, por não mais suportarem situações de ódio e violência. Abandonando inclusive a advertência contida no Eclesiastes 9,10: “O que suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria”.

Mordechai Chaim Rumkowski (1877-1944), figura chave do romance Os Destituídos de Lódz, era um judeu polonês que foi nomeado presidente do gueto de Lódz, tendo sido empresário e diretor de um orfanato antes da ocupação nazista. Pesquisa feita por Isaías Tronco, nos Conselhos judeus sob ocupação nazista, revisa a visão que muitos possuem de Rumkowski como traidor. Arnold Mostowicz, que viveu no gueto de Lódz, justifica as estratégias adotadas por Rumkowski em suas memórias, dizendo que ele, prolongando a existência do gueto de Lódz por dois anos, possibilitou que mais pessoas sobrevivessem. E conclui: “Este é um ajuste de contas horrível, mas dá a Rumkowski uma vitória póstuma”.

Segundo testemunhos sobrevivenciais, Mordechai é descrito sob prismas radicalmente diferentes. Por uns, como agressivo, dominador, sedento por honra e poder, barulhento, vulgar e ignorante, impaciente, intolerante, impulsivo e sensual. Por outros, ele é retratado como um homem de talento organizacional excepcional, rápido, muito enérgico, e verdadeiro para tarefas que ele estabeleceu para si mesmo. Alguns ainda se lembram dele por seus discursos de assombração.

Rumkowski e sua família juntaram-se voluntariamente ao último transporte para Auschwitz, sendo assassinados a 28 agosto de 1944. Um amigo da família, em 1944 adolescente residente no gueto de Lódz, aventou a possibilidade de ter sido ele e seus familiares assassinados pelos demais prisioneiros judeus.

O livro é envolvente, esclarecedor e historicamente bem estruturado. Uma leitura que nos previne contra as barbaridades acanalhadas de todos os “ismos”, religiosos e laicos, algumas bem recentes. Páginas lidas embasadas no pensar do escritor norte-americano Philip K. Dick (1929-1982): “Estamos em uma caverna, como Platão pensava, e estão nos mostrando um filme funky que não acaba nunca.”

Saibamos racionalmente como sair das nossas cavernas mentais e sociais.

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