MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

Muitos obras de ficção já foram chamadas de proféticas, por mostrar coisas que mais tarde aconteceriam na realidade. Dois livros que certamente se encaixam nesta categoria são “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, publicado em 1932, e “1984”, de George Orwell, publicado em 1948. Em conjunto, os dois descrevem o mundo de hoje com surpreendente precisão. Ambos também têm em comum a biografia dos autores, ambos britânicos que se envolveram com a política e se decepcionaram. Vale lembrar que o antigo Império Britânico atravessou o século 20 em uma lenta decadência e em um contínuo processo de estatização muito similar às idéias dos dois livros.

1984 é muito pessimista. Mostra uma sociedade empobrecida e ignorante, mantida sob constante vigilância por um governo opressor e onipresente, que justifica sua violência pela existência de uma guerra. Em certo ponto, é mostrado que a realidade é o contrário: a guerra é que é mantida apenas para justificar o permanente estado de opressão.

Admirável Mundo Novo, por outro lado, pode ser chamado (com algum humor negro) de otimista. Não existem guerras, porque existe apenas um “estado mundial”, cujo lema é “Comunidade, Identidade, Estabilidade”. É uma sociedade totalmente coletivista, onde a individualidade é mínima e desencorajada. Tudo é planejado, tudo segue as normas estabelecidas. É um mundo que soa estranhamente familiar para quem vive no mundo de hoje. Alguns exemplos:

– No livro, o conceito de família é inexistente. Os bebês são produzidas em “linhas de produção”, criados e educados pelo estado, e os adultos passam a vida em completa liberdade sexual. No mundo real, apenas a “produção” continua seguindo o processo tradicional, mas a formação das crianças é cada vez mais controlada pelo estado.

– No livro, todas as pessoas recebem gratuitamente uma droga sintética chamada “soma”, que é considerada segura e socialmente útil (“todas as vantagens do cristianismo e do álcool, sem nenhum dos seus inconvenientes”, diz um personagem). No mundo de hoje, as pessoas têm à sua disposição não uma, mas várias opções para fugir da realidade: Rivotril, Frontal, Prozac, Lexapro, Zoloft, Wellbutrin e dezenas de outros.

– No livro, a obediência ao padrão está acima de tudo; a maior obrigação das pessoas é agir e pensar da mesma forma que todos os outros. Diz um personagem: “Não há crime mais odioso que a falta de ortodoxia na conduta. O homicídio mata apenas um indivíduo, e, afinal, o que é um indivíduo? Podemos produzir indivíduos novos com a maior facilidade, tantos quantos quisermos. A falta de ortodoxia, porém, ameaça mais que a vida de um simples indivíduo: ela atinge a própria Sociedade.” No mundo de hoje, é fácil notar que o estado se preocupa cada vez menos com agressões ao indivíduo, como roubos ou assassinatos, mas se preocupa muito com ameaças a ele próprio.

Por que o mundo utópico de Admirável Mundo Novo parece mais real e mais possível do que o mundo distópico de 1984? A melhor explicação vêm do próprio Huxley, em um prefácio escrito para a reedição de 1946:

“Não há, por certo, nenhuma razão para que os novos totalitarismos se assemelhem aos antigos. O governo pelos cassetetes e pelotões de fuzilamento, pela carestia artificial, pelas prisões e deportações, não é simplesmente desumano (ninguém se importa muito com isso hoje em dia); é, de maneira demonstrável, ineficiente – e numa época de tecnologia avançada, ineficiência é o maior dos pecados.”

Um crítico comparou as duas obras dizendo: “Em “1984”, as pessoas são controladas pela dor e pelo medo. Em “Admirável Mundo Novo”, elas são controladas pela alegria e pelo prazer. Orwell previu um mundo onde os livros seriam proibidos. Huxley previu um mundo onde não é preciso proibir os livros porque ninguém quer ler.”

A sociedade criada (ou profetizada) por Huxley eliminou a escassez, o sofrimento, a dor – tudo que havia que desagradável na vida, enfim. Em um diálogo no final do livro, o “administrador mundial” explica que “a população ótima é como um iceberg: 90% abaixo da linha de flutuação, 10% acima dela”. Seu interlocutor pergunta se as pessoas “de baixo” são felizes, e o administrador responde “sim, mais felizes que os que estão acima”. “Apesar daquele trabalho horrível?”, é a réplica. “Horrível? Eles não acham. É leve, de uma simplicidade infantil. Nenhum esforço excessivo da mente ou dos músculos. Sete horas de trabalho leve, depois a ração de soma, esportes, cópula sem restrições e cinema. Que mais poderiam pedir?”

Analisando essa sociedade, Huxley faz uma análise/previsão que se tornou famosa:

“Um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos e os administradores controlassem uma população de escravos que não precisariam ser coagidos, porque amariam a escravidão. Fazer o povo amar a escravidão é a tarefa, hoje, dos ministérios, diretores de jornais e professores.”

Ministérios, diretores de jornais e professores. Em outras palavras, o governo e seus muitos órgãos, a imprensa e a escola. São eles que se dedicam à tarefa de fazer o povo amar a escravidão, temer a liberdade, suplicar por ordens e regulamentos, e de forma geral odiar qualquer um que cometa a heresia de pensar por si mesmo. São eles os executores do plano de levar-nos ao Admirável Mundo Novo. Já são muitos os seus apoiadores, que dizem que o bom cidadão obedece e não questiona, repete o que ouve mas não pensa, apoia tudo que a maioria apoia e condena, usando a violência se lhe pedirem, tudo o que a maioria condena.

Imitando a história, o Mundo Novo ficcional de Huxley surgiu após uma guerra, aproveitando o sentimento coletivo de que qualquer paz, ainda que sob uma tirania, é melhor do que a destruição e o sofrimento inevitáveis em qualquer guerra. A última “grande” guerra acabou há três quartos de século, mas de lá para cá as pequenas guerras têm sido constantes, e a simpatia pela guerra parece estar crescendo. Huxley disse em 1946:

“Os horrores da Guerra dos Trinta Anos foram uma lição, e por mais de cem anos os políticos e generais da Europa resistiram conscientemente à tentação de ir até os limites da destruição ou de combater até que o inimigo fosse inteiramente aniquilado. Porém, nos últimos trinta anos não tem havido conservadores, mas apenas radicais nacionalistas de direita e radicais nacionalistas de esquerda. O último estadista conservador foi o Marquês de Lansdowne; e, quando ele escreveu uma carta ao The Times sugerindo que a Primeira Guerra Mundial deveria ser concluída por um acordo, como tinham sido a maioria das guerras do século 18, o jornal se recusou a publicá-la. Os radicais nacionalistas impuseram sua vontade, com as consequências que todos conhecemos: bolchevismo, fascismo, inflação, depressão, ruína e fome.”

Então, estaremos chegando ao Admirável Mundo Novo? Em minha opinião, já estamos muito mais perto do que pensamos.

9 pensou em “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

  1. “1984” de Orwell é real; Admirável Mundo Novo é pura ficção, pois não existe povo feliz sem liberdade de expressão e de escolha.

    Não há um único exemplo no mundo onde a ficção de Huxley possa ser comprovada.

    O indivíduo é a base da sociedade.

    Relativizar isso é negar a razão da existência humana.

    Para manter o bem da sociedade pode-se eliminar o indivíduo que supostamente a ameaça. Esta é a base das tiranias e da injustiça.

      • “A sociedade criada (ou profetizada) por Huxley eliminou a escassez, o sofrimento, a dor – tudo que havia que desagradável na vida, enfim.”

        Onde há isso?

        • Agora fiquei em dúvida se você leu ou não o livro.

          Como diz o Administrador Mundial no diálogo com o Selvagem, “é preciso ater-se a um só conjunto de postulados. Não se pode jogar Golfe Eletromagnético segundo as regras da Balatela Centrífuga”

          Quando se fala em “sociedade perfeita”, é preciso perguntar sob qual postulado se está avaliando esta perfeição. Citando outro trecho:

          “As pessoas agora são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se em segurança; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem.”

          Ou seja: o sentimento de felicidade depende de qual a definição de “felicidade” que as pessoas aprenderam, e é possível (com o trio governo-mídia-escola) incutir nas pessoas os conceitos mais inusitados de “felicidade”. Basta observar que todas as ditaduras, mesmo as mais violentas, opressoras e criminosas, têm admiradores que as elogiam (e, quando elas acabam, passam a vida a suspirar de saudade e a dizer “naquele tempo é que era bom…”)

  2. Excelente crônica, Marcelo, uma das melhores de todas as publicações internéticas, hoje, no Brasil! Como diz João Francisco: “1984” de Orwell é real”, está todo presente aqui, de cabo a rabo!

    Excelente final de semana.

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