JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

A serra da Pedra Encantada

Nas várias e várias noites em conversas nas redes armadas na latada fronteiriça da casa, com o silêncio noturno sendo quebrado pelo ranger do armador da rede em balanço impulsionado pelo “tacar” do pé na parede, João Buretama, meu avô materno costumava nos levar a viagens reais que, de tão espetaculares, nos levavam a imaginar serem anedotas (na linguagem atual, “narrativas”).

Nascido em Uruburetama, pequeno município da costa norte marítima do Ceará, Vovô dizia ter sido chamado pelo encantamento de algo inusitado que acontecera em Timbaúba, povoado vizinho de Queimadas, onde quase todos nascemos. Ali, Vovô conheceu Vovó, e com ela gerou duas filhas (Maria, a tão famosa “Tia Maria” dissertada várias vezes nos meus textos; e Jordina, minha eterna e encantada rainha).

Pois, no balançar das redes, Vovô contava que chegara no lugar por volta de 1908, fisgado pelo inusitado: a queda, considerada milagrosa, de um “corisco”.

“Corisco: pedra de raio, pedra de trovão ou pedra de thor é o nome que em Portugal se dá aos instrumentos de pedra pré-históricos, principalmente bifaces, aos cristais de rocha muitas vezes encontrados nas raízes das árvores, às cunhas de ferro e aos meteoritos”.

Aquele acontecimento incomum mexeu com o Estado e o país. Muitos imaginaram o início do fim do mundo e o povo de lugares distantes não tomou conhecimento por que ainda não existiam a televisão para mostrar as imagens, nem o Repórter Esso tinha representante na mídia cearense.

O “corisco” era uma pedra gigantesca que, se adonando do lugar, virou serra e ficou conhecida como “Serra da Pedra Encantada”. Uma pedra só, e, por isso, sem árvores. Em dias de sol quente produzia um calor insuportável.

Vovô continuava “se balançando na rede armada na latada”, falando como se papagaio fosse. Contava que, durante anos, muitos tentaram subir aquela serra. Mas não encontravam apoio que garantisse o que hoje a modernidade chama de “escalada” e denomina os afoitos de “raper”.

Aos poucos o vento trouxe a poeira e o sereno noturno produziu limo. A ação da Natureza começou a mudar o “corisco” que ficou conhecido em definitivo como “Pedra Encantada”.

Descobriu-se, anos depois, que algumas aves procuravam as rachaduras que o tempo impôs a pedra para se acasalarem e reproduzirem sem o incômodo humano. Durante mais tantos anos, foi descoberto que, a preferência das aves pelo lugar onde se reproduziam, era por conta do reinado de uma águia, cuja espécie estava em extinção e resolvera escolher a Pedra Encantada como última morada. Ali, a águia era a rainha e as outras espécies se transformaram em súditos que voavam e voavam em busca de alimento para os filhotes e para a águia-rainha.

A águia que virou rainha da Serra da Pedra Encantada

Sem visitantes, a Serra da Pedra Encantada reinava absoluta na Timbaúba. Era, naquele tempo, a única atração “turística” do lugar, e alguns coronéis da época até contratavam fotógrafos lambe-lambe para fotografias que, nada mais eram que as atuais “selfies”!

Com o passar dos tempos, a sabedoria popular e os mestres do povoado concluíram que aquela era a maior atração do lugar. Resolveram construir cercas no pé da serra e espalharam a mentira de que todas as árvores que rodeavam a serra, também eram sagradas – ainda que nem a Diocese cearense ou o Vaticano tivessem produzido a famosa fumaça branca.

Mas, a atração maior estava por vir. E acabou chegando em meados dos anos da década de 30.

As aves que se reproduziam nas frestas da pedra e voavam de lugares distantes para trazer alimento para a águia-rainha, acabaram trazendo, também, algumas sementes como alimento para os filhotes. As sementes nem todas eram engolidas pelos filhotes. As que escapavam caíam entre as pedras e, ainda que chovesse muito pouco ou quase nada, acabavam se reproduzindo em flores.

Flores nascidas entre pedras

Eis que, o simples fato de que aquela pedra gigantesca era a principal “atração turística” da Timbaúba, embora não gerasse qualquer tipo de arrecadação que pudesse melhorar a infraestrutura do lugar, quem poderia afirmar com segurança que, no futuro, aquele simples povoado pudesse vir a ser mais um “Horizonte” para a economia e o turismo cearense?

Pois assim aconteceu: com a ajuda das aves que se reproduziam em períodos férteis naquela pedra, as sementes que escapavam de serem engolidas pelos filhotes se reproduziam. E, foi a partir desse momento que, da pedra encantada começaram a nascer flores. A pedra de onde nasciam flores. A notícia correu o Estado e o mundo, com Timbaúba ganhando, finalmente e de forma merecida, a ostentação de lugar que tinha o privilégio de ter a Serra da Pedra Encantada.

A floração vicejante da Pedra Encantada

Repentinamente o cântico de uma cigarra se fez ouvir por conta do silêncio reinante chamou a atenção – até por que não se ouvia mais o rangido do armador enferrujado produzido pelo balançar da rede.

Levantei e olhei Vovô dormindo feito um bebê. Concluí que aquela estória toda ele contara em sonho.

3 pensou em “A SERRA DA PEDRA ENCANTADA

  1. Parabéns pelo belíssimo texto, querido escritor José Ramos, a começar pelo título, A SERRA DA PEDRA ENCANTADA”!
    Sou fã dos seus escritos, principalmente quando envolvem fatos líricos, referentes à sua família.
    Seu avô materno, João Buretama, era um sábio, um poeta, e um contador de histórias nato! Tinha o dom de entabular conversas líricas e pitorescas que encantavam os ouvintes, que arrodeavam a rede onde se balançava, impulsionando-a com o pé na parede, e fazendo ranger os armadores.
    Contava histórias reais, que, de tão espetaculares, levavam os ouvintes, inclusive os netos, a imaginar serem anedotas.
    Fiquei encantada com as flores nascidas nas pedras, aproveitando algumas sementes levadas para os ninhos. A belíssima águia que ilustra o texto também é encantadora.
    Sua tia Maria e sua venerada mãe, Jordina, a rainha que lhe deu à luz, são personagens dos meus pensamentos.
    Você sempre foi cercado de muito amor.!

    Grande abraço!

    Obs.
    Para você, “SERRA DA BOA ESPERANÇA”, com Francisco Alves. (De Lamartine Babo)

    • Violante, com o máximo respeito: com certeza você é um “buquê” formado na Pedra Encantada. Fico muito grato. Abrace Diana por mim, em comemoração ao “Dia das Crianças”!

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