JOSÉ RAMOS - ENXUGANDOGELO

Bernardo, o sapo

Lembro bem. Uma das “loterias que ganhei de Deus” foi a boa memória, ao vicejar juventude e disposição aos 80 anos. Não acredito que possa ganhar, algum dia, prêmio melhor que a lucidez num país e num mundo tão conturbado quanto o nosso.

Pois, tudo acontece em meados de 1954, meses após a data comemorativa de São José (19 de março), Padroeiro do Estado do Ceará. As graças da chuva e de um bom inverno foram atendidas após os milhares de orações.

Chuva. Muita chuva. E, com as chuvas trazendo a esperança de um bom inverno e a resposta positiva aos que plantassem, vieram os “bônus” que incomodam tanto: larvas, mosquitos, muriçocas, moscas, mutucas e outros que tais.

Aquilo tudo acabou motivando os Albano, proprietários de muitos hectares de terra naquele pedacinho de mundo, a tentarem trazer de volta Herculano, conhecido e respeitado meeiro, que, anos atrás mudara para o Amazonas com a família – fora tangido pela seca.

Após telefonemas, carregadas das dificuldades da época, finalmente o contato, o convite – com algumas vantagens, claro! – a aceitação.

Experiente, conhecedor do lugar, Herculano sabia que precisaria se prevenir. E fez isso, sim. Na bagagem, um sapo gigante, dos que só são encontrados na rica biodiversidade amazonense.

Um “sapo”, não. Corrijo: um casal de sapos. Um sapo e uma sapa (para deixar claro, que, “um casal” é um macho e uma fêmea, pois os moderninhos da escola paulofreiriana pensam diferente.

Mudança feita, casa da roça reaparelhada. Calhas colocadas para captação da água da chuva e vida que seguiu. Mas, claro que Herculano acertara quando trouxe o casal de sapos.

Preparou um local fresco (êêêêppppaaaa!) onde poderia abrigar o casal “amazonense” para que os dois pudessem exercer seu mister: captar os insetos incômodos que traziam doenças parasitárias.

Bernarda, a sapa

Muita chuva. O inverno estava “pegado” como dizia Herculano. Agora, era cuidar da vida, preparando a roça para semear.

Depois de se certificar que a cerca era segura, sem brechas que permitisse a fuga de Bernardo e Bernarda, Herculano resolveu abrir as portas do cativeiro para que o casal (um macho e uma fêmea, repito) desenvolvesse o papel para o qual foi trazido.

Apenas uma semana após a soltura de Bernardo e Bernarda, Herculano percebeu que acertara. Os mosquitos e muriçocas diminuíram. Quase não existiam. As moscas, infelizmente, eram produto da umidade.

Eis que, antes do fim do inverno e chegada do outono emendado com a primavera, Herculano percebeu que, não apenas os insetos haviam diminuído, quase desaparecendo, como apareceram os frutos da liberdade do casal Bernardo e Bernarda: centenas de “bernardinhos, e, provavelmente, bernardinhas”.

Bernardinhos, os sapinhos

A chuva em excesso na moradia, mas na exata quantidade na roça, acabou formando um lago, onde Bernardo e Bernarda costumavam banhar, fazer natação e “frutificar”. Era, podemos dizer, o exercício da liberdade, tão benéfica aos humanos – e por que não dizer, também aos batráquios?

Pelo que contava Herculano, além de gigantes, Bernardo e Bernarda tinham um dom natural: eram alfabetizados. Estudaram anos na Universidade Kawuy, instalada há muitos anos e em pleno funcionamento nas grotas subterrâneas do rio que corre por baixo do “insecável” rio Amazonas. Bernardo e Bernarda sabiam das coisas, pois não perderam tempo “fazendo a cabeça” com a cannabis.

Pois, formado o contingente na roça de Herculano, Bernardo e Bernarda trataram de cuidar de si e dos seus. Descobriram uma grota e, nas várias fugas, ali se reuniam. Na realidade, tramavam algo.

Os Bernardinhos cresceram. Descobriram que precisavam sair daquele chiqueiro que Herculano lhes proporcionavam. Não podiam viver exclusivamente comendo mosquitos, muriçocas e moscas à serviço do bem-estar de Herculano. Precisavam, enfim, conquistar a liberdade – e entenderam que, se essa tal liberdade não fosse algo bom, os humanos não lutariam por ela.

Criaram instituições sapais. Criaram um Congresso, uma Câmara, e um STF (Sapal Tentativa Fomentadora), com mandatos “ad seculorum” e decisões inquestionáveis. Bernardo seria o presidente vitalício e Bernarda a vice, também vitalícia. Usariam togas vermelhas em vez de pretas e teriam como metas principais na luta pela liberdade: 1 – “não” ao sal que os humanos usam para espantá-los; 2 – não comerem mais os mosquitos, as muriçocas e as mutucas, esses principais produtos contaminados pelos humanos.

As reuniões deliberativas aconteciam sempre, nas noites das sextas-feiras, dia da semana que os humanos estão resolvendo todos os seus problemas ao redor de mesas de bar e muita cerveja.

Resolveram protestar, ainda sem poderem sair do roçado de Herculano, mas portando faixas com dizeres como: “abaixo o sal”, “sapos também têm direitos”, “liberdade para trocarmos o consumo de mosquitos infectados por cannabis”, “queremos o direito de usar os mesmos banheiros, independentes do gênero sexual”.

Herculano viu tudo, suportou tudo e reclamou com a mulher, que precisariam de mais verba para satisfazer a todos (incluindo os sapos e sapinhos), preparando um especial pedido para aumento do fundo eleitoral.

Afinal, as eleições estão se aproximando, e precisam cuidar dos eleitores (sapos)!

2 pensou em “A REVOLUÇÃO DOS SAPOS

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