Faz pouco falei sobre como se deu a posse de Sarney, eleito vice e que passou a ser, definitivamente, presidente da República. Sacramentando o fim da Ditadura Militar. Leitores pediram que seguisse nessa conversa lembrando nosso passado. Manda quem pode (eles), obedece quem tem juízo, ou pensa que tem (o que dá no mesmo). E volto àquele tempo, alguns dias antes, para contar como Sarney assumiu como presidente interino; posto que Tancredo Neves estava em um hospital e ninguém sabia se poderia mais tarde, depois de recuperado, ser presidente. Véspera da posse que seria de Tancredo. Chegamos, no aeroporto de Brasília, preparados para a grande festa da redemocratização. Mas não correu tudo como se acreditava; que, fora da programação, a Polícia Federal me esperava.
– O ministro Fernando Lyra pediu para ir direto ao gabinete de Dornelles.
Maria Lectícia e os pais dela, dona do Carmo e o dr. Armando Monteiro Filho, foram para o hotel; e, eu, para a Esplanada. Francisco Dornelles era sobrinho de Tancredo, futuro ministro da Fazenda e homem forte do seu governo. Perplexidade no ar, pelas incertezas do momento. Na sala de espera se amontoavam assessores, militares, quase todos os futuros ministros. O baiano Carlos Santana (da Saúde) ficava olhando só para o alto, imóvel, como se estivesse congelado. O gaúcho Pedro Simon (da Agricultura) rodava em volta dele mesmo, como um peru, sem parar. Fernando, ministro da Justiça, disse
– Vai assumir (a presidência da República) Ulysses (Guimarães), como presidente da Câmara dos Deputados.
– Não pode, Fernando (como a doença de Tancredo era pública, já tinha examinado as questões jurídicas). O vice (Sarney) presta compromisso, perante o Congresso. Tancredo não, que está no hospital e tem 10 dias para isso. Ainda mais, por haver “motivo de força maior” (Constituição da época, art. 78). O Congresso declara momentaneamente vago, seu cargo, e assume o vice. Esse o caminho.
– Mas assume Ulysses.
– Então pode escolher outro para meu lugar, amigo. Que nosso primeiro gesto, no Ministério, seria uma ilegalidade. E não farei parte disso.
Algum tempo depois, Dornelles chamou cinco ou seis para reunião na sala dele (já com muitos outros personagens, por lá). O resto ficou onde estava. Na saída, Fernando contou como foi. Dorneles
– Affonso Arinos disse haver um antecedente, com Rodrigo Alves; que, doente, assumiu seu vice Delfim Moreira. Brossard e Saulo Ramos defendem a mesma tese. Fosse pouco, o próprio Ulysses prefere Sarney, repetindo sempre “é isso que a Constituição manda”. E Leitão de Abreu (que coordenava a transição por João Figueiredo, último presidente militar) garante que Sarney assumirá sem contestações.
O futuro ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, pediu a palavra. Era comandante do 3º Exército e contava com apoio de parte expressiva das Forças Armadas. Mostrou uma Constituição cinza, edição de bolso (quem viveu em Brasília, naquele tempo, sabe qual era) e falou
– Devemos seguir o que diz esse livrinho.
Fernando
– Meu Secretário Geral (eu) também diz que assume Sarney, como vice. E nem vai ficar no cargo, se a gente escolher Ulysses.
Muitos outros confirmaram esse entendimento. E Leônidas, depois de dar um tapa forte na mesa,
– Então está resolvido. Assume Sarney. Alguém é contra?
Silêncio na sala.
– E não se fala mais nisso.
Ninguém teve disposição, ou coragem, para contradizer. A palavra das forças armadas, numa hora dessas, é forte. E mais tarde, já na casa de Sarney, a transição seria sacramentada em ata por todos assinada. Foi assim.
Obrigado Dr. José Paulo
Continue assim, com seus relatos sobre esse período que ainda continua obscuro para muita gente. São fundamentais esses relatos in loco, que têm muito mais valor histórico do que a papagaiada de políticos sujos e “jornalistas” chapa branca (esteja quem estiver no poder).
Esses relatos são o sal da terra e deveriam ser referência para historiadores que fazem jus ao nome. Parabéns e obrigado por mais esta importante revelação.
Marcon Beraldo, de São José dos Campos, SP
Ver a história retratada por seus próprios personagens, é outra coisa absolutamente diferente. A história fica dinâmica. Muito interessante, dr. José Paulo..