Editorial Gazeta do Povo
Aos poucos, os últimos limiares que ainda separam o Brasil de um Estado totalitário vão se dissipando. Em vez de instituições e poderes independentes, harmonicamente convivendo sob a orientação da Constituição, o que se vê são ações despropositadas, que, supostamente com o intuito de proteger a democracia, avançam sobre o Estado de Direito. O mais recente capítulo dessa escalada autoritária é a abertura de um inquérito contra o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro, autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). A investigação busca apurar suposta coação e obstrução de Justiça, com base em uma representação formulada pelo líder do PT na Câmara, deputado Lindbergh Farias.
A acusação sustenta que Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, teria atuado nos Estados Unidos junto a empresários, congressistas e representantes da Casa Branca com o objetivo de sancionar autoridades brasileiras, especialmente integrantes da Suprema Corte, da Polícia Federal e da própria PGR. Como base para a investigação, a PGR apresenta entrevistas e postagens do deputado que, em sua avaliação, configurariam uma tentativa de intimidar autoridades públicas envolvidas na ação penal que tramita no Supremo contra seu pai, réu por suposta tentativa de golpe de Estado e outros crimes relacionados ao episódio de 8 de janeiro de 2023.
Vale lembrar que a perseguição política a Eduardo Bolsonaro não é nova. Em fevereiro, parlamentares da base governista – entre eles o mesmo Lindbergh Farias – protocolaram pedido de investigação contra o deputado por “lesa-pátria” e “conspiração contra o governo brasileiro”, sugerindo, inclusive, a apreensão de seu passaporte. À época, Eduardo era cotado para presidir a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. O desfecho é conhecido: em 18 de março, ele anunciou sua licença do mandato para permanecer temporariamente nos Estados Unidos; horas depois, Alexandre de Moraes arquivou o pedido petista.
Em ambos os episódios, o “crime” do deputado é o mesmo: denunciar no exterior a crescente erosão das liberdades democráticas no Brasil – como a censura cada vez mais corriqueira, o abandono do devido processo legal nos julgamentos relacionados ao 8 de janeiro, e a sistemática violação da imunidade parlamentar. A diferença agora é o sinal de que as denúncias brasileiras começam a sensibilizar autoridades internacionais. Na semana passada, o secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, declarou que há “grandes possibilidades” de o ministro Alexandre de Moraes vir a sofrer sanções sob a Lei Magnitsky, norma americana que pune violações graves de direitos humanos. Curiosamente – ou não – o inquérito contra Eduardo foi instaurado apenas quatro dias após essa declaração.
A atuação de Eduardo Bolsonaro no exterior insere-se na tradição democrática de pedir socorro quando se considera que instituições nacionais parecem falhar em proteger os direitos fundamentais. Concorde-se ou não com a percepção do deputado, trata-se de uma tática totalmente legítima, amparada inclusive em tratados internacionais de direitos humanos; vítimas de regimes autoritários mundo afora sempre fizeram e continuam a fazer isso quando julgam que a pressão internacional pode contribuir para a normalização institucional de seus países. Outros parlamentares brasileiros têm feito o mesmo. A visita da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao Brasil em fevereiro, quando diversas autoridades, vítimas de censura e especialistas foram ouvidos sobre as restrições às liberdades civis no país, por exemplo, aconteceu após parlamentares brasileiros exporem à OEA preocupação com a situação da liberdade de expressão no Brasil.
Buscar apoio internacional contra o que se considera arbitrariedades de um sistema de Justiça não é novidade no Brasil – e tampouco pode ser considerado crime. O próprio Partido dos Trabalhadores, hoje no poder, recorreu a essa prática. Em 2017, os advogados de Luiz Inácio Lula da Silva viajaram à Europa para dialogar com parlamentares britânicos e italianos, em uma tentativa de obter apoio internacional contra as decisões do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Estranhamente, à época, não se falou crime, nem tentativa de obstrução da Justiça.
O exercício da crítica e a exposição de possíveis violações às liberdades constitucionais, seja dentro do país ou internacionalmente, não podem continuar a ser tratados como ameaças – são expressões legítimas da democracia. Até hoje há brasileiros, jornalistas, influenciadores, comunicadores, empresários sendo investigados, alguns sofrendo sanções absurdas, apenas por fazerem o que fez Eduardo Bolsonaro: chamar a atenção sobre o que consideram ser abusos do Judiciário cometidos em nome da defesa da democracia. Se o Brasil não resgatar de forma urgente o equilíbrio entre os Poderes, o respeito irrestrito ao devido processo legal e à liberdade de expressão como pilares inegociáveis da convivência democrática, a lista desses “criminosos” só vai aumentar. Ignorar o absurdo do inquérito contra Eduardo Bolsonaro – que se parece muito mais com uma perseguição pura e simples do que com uma investigação – é aceitar que arbítrio tome o lugar da Justiça.