Natal é tempo de pensar, mais ainda que em outros momentos da vida, no que vai bem dentro de cada um de nós. No mais profundo e no mais alto. Aproveito essa data, então, para falar de um livro que vi nascer. Já lançado no Brasil, este fim de ano, pela Ed. Record. Em 2023, será com a Bertrand (Portugal). E, a partir de 2024, no resto da Europa. Importante, sobretudo, porque fala nos começos do homem, “com a violência dos primeiros tempos convertida em justiça, compaixão, misericórdia, perdão”. O que tem tudo a ver com esse tempo do Natal, especialmente por ser um modelo de fraternidade. A partir, e nisso é original, dos alimentos que estão na Bíblia. Por mais de 10 anos, todos os dias (incluindo finais de semana), já às 5 da manhã, Maria Lectícia estava trabalhando nele. Na busca (infrutífera, por sermos humanos) pela perfeição. E o resultado foi compensador, por favor acreditem. Pretendia hoje, véspera do Natal, falar desse livro, A mesa de Deus. Mas prefiro transferir essa tarefa ao Cardeal Dom José Tolentino Mendonça. Que o conhece tão bem quanto eu. São dele as palavras que se seguem, tiradas de apresentação do dito livro (uma pequena parte dessa apresentação, apenas). Passo a palavra, então, ao Cardeal.
“Na arquitetura de muitas casas há duas portas: aquela principal, a mais utilizada, por onde circulam os hóspedes com quem fazemos cerimônia; e a porta de serviço que, normalmente, dá acesso direto à cozinha, por onde passam apenas aquelas pessoas que têm grande familiaridade com a casa. Num primeiro relance, poderá parecer estranho um livro que se ocupa dos alimentos e da cozinha da Bíblia: Não é essa a entrada de acesso principal, diríamos todos. A verdade é que sendo, incontestavelmente, o livro mais conhecido e frequentado do mundo, uma parte significativa dos seus leitores ainda faz muita cerimônia. Isto é, ainda não se acentuou numa imersão total na Escritura, aliás, como a própria Bíblia reclama que façamos. Não é por acaso que, para construir este fascinante volume, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti precisou de mais de uma década. É preciso colar-se à letra do livro, pele com pele, valorizá-lo com aquela atenção intransigente, humilde e interminável que nos dá o amor.
“A cozinha é um aspecto da casa. A sua grandeza vem de se colocar ao serviço, está na arte de secundar. Inesquecível e elegante arte, devemos dizer. Este livro não compete com os dicionários, as concordâncias, os comentários que fazem habitualmente a riqueza da biblioteca que suporta a hermenêutica bíblica. Junta-se a eles como mais um instrumento, como mapa para o prazer de ler. Este livro participa desse esforço coral de pesquisa. Que uma mesa não é só uma mesa. Também por isso, para os leitores da Bíblia, o livro de Maria Lectícia oferecerá estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia.
“A cozinha é uma máquina de suscitar desejo. Não nos devemos admirar que uma das últimas palavras de Jesus tenha sido: Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco (Lc 22, 15), associando sabiamente a refeição do desejo. A cozinha e a mesa não reduzem o mundo: ampliam-no supreendentemente. Para quem quiser ver, a alimentação é um tema particularmente denso, onde avultam e se colhem alguns dos códigos mais intrínsecos das culturas. Quando se chega a perceber o conteúdo e a lógica da alimentação, a ordem que regula a cozinha e a mesa (o que se come, como se come, com quem se come, o significado dos diversos lugares e funções à mesa…), alcança-se um saber antropológico determinante, dos outros e de nós próprios. Maria Lectícia escreveu este livro também para que nós pudéssemos ler.
“Por outro lado, se atendermos à massa impressionante de prescrições culinárias presentes na Bíblia, não nos parecerá despropositado e excêntrico que se fale de uma autêntica teologia alimentar ou se identifique no texto sagrado judaico e cristão um esplêndido catálogo de receitas. De certeza que a escrita deste livro alterou a percepção que a sua autora tinha da Bíblia, e poderá alterar a dos leitores. Mas no melhor dos sentidos. Tornando de casa o leitor, ajudando-o a perceber a articulação entre saber e sabor, convocando-o para uma familiaridade com este texto inesgotável, desconstruindo o automatismo das leituras abstratas e gnósticas que olham para a Bíblia como um livro de verdades, onde a letra é relativizada e desconhecida.
“A torrente de passagens bíblicas referentes a alimentos e à mesa que Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, com mão informada, com mão pacientíssima e brilhante, aqui revisita não são, portanto, uma marginalia destinada a ser etiquetada sob a categoria de curiosidades ociosas. Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também é espiritual. O título escolhido para esta obra está certo. E o livro dá a provar o que promete. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti oferece-nos aqui uma daquelas experiências que não vamos querer esquecer”.
PS. A todos e cada um desejo, com o coração, um Natal que seja esplendoroso. Feliz Natal, pois.
Neste Natal, mesa mais farta não poderia haver. Os sabores do saber – ou seria o saber dos sabores? – de Dona Lectícia são alimentos que suprem a fome da inteligência dos homens de bem.
Depois do lançamento do magnífico História dos SABORES PERNAMBUCANOS, livro publicado em 2015, que perfuma sabores alimentícios nortistas por todas suas 360 páginas, nada mais justo, justíssimo, que saborearmos A MESA DE DEUS, Os Alimentos da Bíblia, de Dona Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti.
Meus parabéns a autora, que tudo que faz o faz com amor e seriedade.
Tive o privilégio de ser agraciado, com dedicatória, com um exemplar do livro A MESA DE DEUS.
Ele confessa a cumplicidade incentivadora do Grande Mestre.
É um verdadeiro manjar dos deuses.