MARCELO BERTOLUCI - DANDO PITACOS

O gosto pelo fingimento e pela hipocrisia faz parte da natureza humana, em todo o mundo, mas não dá para negar que nosso Brasil está entre os primeiros nesse quesito. Somos a terra do “é proibido mas pode”. Cassinos são proibidos mas existem em qualquer cidade média. Aborto é proibido mas quem quiser faz com a maior tranquilidade (cinquenta mil por ano segundo as estimativas mais prudentes). Jogo do bicho é crime mas no carnaval os bicheiros são celebrados na televisão como beneméritos das escolas de samba. No tempo do câmbio controlado, os noticiários informavam todo dia a cotação “no oficial” e a cotação “no paralelo”. Sempre tivemos “leis que pegam” e “leis que não pegam”.

Claro que nada disso chega perto, em termos de incoerência, com a chamada “Guerra às Drogas”. O desenho abaixo sintetiza bem o porquê.

O que hoje é chamado de “guerra às drogas” é o resultado da união de dois interesses, um econômico e um político. Em inglês, é costume referir-se a esta união com uma expressão que pode ser traduzida como “moralistas e contrabandistas”.

“Contrabandistas” são os que ganham dinheiro com a proibição, que na verdade é mais uma reserva de mercado. O governo usa o seu “monopólio da força” para eliminar os competidores, e deixa o mercado livre para os seus aliados. O exemplo da chamada “Lei Seca” nos EUA mostra bem que quanto mais tempo dura uma proibição, mais a corrupção penetra em todas as instâncias do governo. Os altos lucros atraem políticos, juízes e policiais (todos abrigados pelo corporativismo estatal) para participar do negócio e protegê-lo usando seus cargos. A postura deste grupo é “quanto menos se falar no assunto, melhor”.

“Moralistas” são o público-alvo de determinados políticos. Nas modernas democracias, um deputado nunca tenta agradar à maioria; ele se dedica a agradar uma minoria que lhe traga votos suficientes para se eleger (no Brasil, um deputado pode ser eleito com menos de 1% dos votos de seu estado). No caso das drogas, o alvo são aquelas pessoas que encaram o assunto de forma dogmática e que gostariam que sua opinião pessoal fosse imposta ao restante do mundo. Para esse público, o discurso de políticos demagogos soa como música: promessas de “guerra sem trégua” e “leis mais duras” que se repetem a cada eleição, mesmo com todos os fatos mostrando que isso é inútil. É que esse tipo de eleitor só aceita que exista um remédio para cada problema, e quando o remédio não funciona, a solução é sempre aumentar a dose.

Não é preciso ser um militar de carreira para saber que, em uma guerra, é importante saber quando se está ganhando ou perdendo, e ajustar a estratégia de acordo com isso. Quando a guerra é conduzida pelos políticos, entretanto, isso é ignorado. Não existem fatos ou números, apenas retórica e discursos emocionados. Quase pode-se dizer que não importa que as drogas sejam comercializadas e usadas livremente, que existam cracolândias no centro das cidades ou que os traficantes (em parceria com a fração corrupta do estado) controlem bairros inteiros; a única coisa que importa é que a lei continue dizendo que é proibido e que muito dinheiro continue a ser gasto em operações inúteis mas que dão audiência na TV.

Apenas como exemplo: só o estado de São Paulo gasta mais de quatro bilhões de reais por ano na suposta “guerra”. O resultado: estimativas da Polícia Federal dizem que menos de 10% da cocaína que entra no país é apreendida.

Enquanto isso, alguns países mostram que existem outras formas de tratar a questão. Por exemplo: a Suíça (que dificilmente será acusada de ser um país subdesenvolvido) implantou em 1994 uma nova política em relação às drogas, que deixou de lado a idéia de “guerra” e passou a concentrar-se na ajuda aos viciados, redução de danos e facilidade de tratamento.

Nos últimos 20 anos o número de processos judiciais relacionados a drogas caiu 75%. Ao mesmo tempo, os casos de contaminação por HIV caíram 84%. Mortes por overdose caíram 64%. O número de viciados que busca ajuda médica chegou a 95%. Os crimes relacionados a uso de drogas caíram 75%, e, mais especificamente, as ocorrências de furto ou roubo cometidas por viciados caíram nada menos que 98% !

Em 2019 os deputados da Califórnia aprovaram a criação de um projeto-piloto que tentaria aplicar algumas das idéias suíças. O governador, que provavelmente tem o dom da clarividência, vetou o projeto com o argumento “isso nunca vai funcionar” (os eleitores moralistas adoraram).

Outro caso de sucesso que vai na mesma direção é Portugal. Em 2001, o país adotou uma política de “descriminalização”: qualquer pessoa portando o equivalente a até dez dias de consumo não é mais assunto da polícia ou da justiça. O dinheiro que era gasto em operações policiais passou a ser usado em clínicas de tratamento e políticas de apoio e redução de danos. Resultados: o número de casos de HIV, que era o maior da Europa em 2000, caiu mais de 90%. O índice de mortes causadas pelo uso de drogas é cinco vezes menor que a média da União Européia. O número de pessoas que procura tratamento médico aumentou 60%. O número de usuários, segundo pesquisas do governo, caiu, especialmente entre os jovens de 15 a 25 anos, que é o grupo mais vulnerável (8% em 2001, 6% em 2012). Em 1999, 44% dos presos em Portugal haviam sido condenados por questões relacionadas a drogas. Em 2021, este número caiu para 16%.

Mais números sobre Portugal podem ser vistos clicando aqui. A experiência está sendo estudada em muitos países e vários estão a caminho de adotar políticas semelhantes (provavelmente a Noruega será a próxima). Nós, como em tantas outras ocasiões, podemos aprender com a experiência alheia ou podemos continuar fingindo que sabemos mais do que todo mundo.

11 pensou em “A GUERRA ÀS DROGAS

  1. Em regra, a prevenção é melhor e mais barata que o tratamento.
    Imaginar que a transferência dos recursos de combate às drogas para aplicar no tratamento dos usuários é melhor, é o mesmo que imaginar que tirar dinheiro do saneamento básico para aplicar tratamento das doenças advindas da falta de saneamento.

    • Nonato, eu não acho que a “guerra às drogas” seja prevenção. Está mais para repressão. Na tua comparação, seria como não fazer saneamento básico, e ao invés disso colocar a polícia para prender quem jogar esgoto na rua.

      É preciso cuidado com comparações. Nem sempre o modelo que serve para um caso serve para outro.

      • Se evito que as mazelas da falta de saneamento ocorram mediante realização do saneamento e, de igual modo, se evito as mazelas do uso das drogas, mediante o combate à sua introdução, distribuição e uso no mercado, estou evitando os males do uso.
        Pode-se dizer que as campanhas antitabagismo resultaram melhor que a proibição pura e simples mas os malefícios do cigarro, frente as drogas de que ora se cuida, são “mínimos”. Tabagista viciado, em regra, não falta ao trabalho ou produz menos por causa do tabaco.
        Viciado em drogas falta ao trabalho, ocasiona ausência de familiares ao trabalho, cometem os mais variados crimes, sobrecarregam o já estrangulado sistema de saúde etc.
        Na minha opinião, a mudança de postura em relação às drogas é infinitamente mais onerosa, perigosa e prejudicial à sociedade sob qualquer aspecto.
        Os modelos de liberação de drogas, até hoje implantados, são iguais aos exemplos socialistas/comunistas: nenhum deu certo.

          • Como é que “deram certo” se ainda estão sendo feitos os estudos sobre isso?
            Na Suíça, uma ou outra cidade aprovou modelos experimentais. E, no país, ao mesmo tempo que descriminalizaram o uso, aumentaram as penas para o tráfico.
            Então, na cidade-teste, fica assim: o tráfico é proibido mas o Estado vira fornecedor.
            Em Portugal, não houve liberação. O modelo segue condenando o tráfico e encaminha o usuário com determinada quantidade para medidas administrativas.
            Os dados coletados em sede de resultados divergem nos organismos internos e externos.
            Resumindo: a utopia continua utópica.
            Numa frase de um cubano ou venezuelano sobre o socialismo/comunismo: não funciona.

            • Gostaria de saber a fonte das suas informações. Pelo que sei, a Suíça implantou o novo modelo em nível federal há trinta anos atrás. Nada de “experimento” nem de “cidade-teste”.

              E em nenhum lugar do texto diz que Portugal “liberou” as drogas. Diz que o porte foi descriminalizado (não é mais tratado pela polícia ou pela justiça e não dá cadeia) e foi dada maior ênfase ao tratamento e à chamada “redução de danos”. Ou seja, mudança de postura e fim da retórica da “guerra”.

              Por que algo que funciona há vinte ou trinta anos e apresenta resultados positivos é “utopia” ?

            • Da Wikipedia:

              “The national drug policy of Switzerland was developed in the early 1990s and comprises the four elements of prevention, therapy, harm reduction and prohibition. In 1994 Switzerland was one of the first countries to try heroin-assisted treatment and other harm reduction measures like supervised injection rooms. In 2008 a popular initiative by the right wing Swiss People’s Party aimed at ending the heroin program was rejected by more than two thirds of the voters. A simultaneous initiative aimed at legalizing marijuana was rejected at the same ballot.”

              A política NACIONAL sobre drogas na Suiça foi desenvolvida no início dos anos 90 e compreende quatro elementos: PREVENÇÃO, TERAPIA, REDUÇÃO DE DANOS E PROIBIÇÃO. Em 1994 a Suiça foi um dos primeiros países a tentar tratamento auxiliado por heroína e outras medidas de redução de danos como salas para consumo supervisionado. Em 2008 uma votação de iniciativa popular proposta pelo Partido do Povo Suíço para encerrar o programa foi rejeitada por mais de dois terços dos votos. Na mesma votação, uma iniciativa para legalizar a maconha também foi rejeitada.

        • Sobre os “malefícios mínimos” do cigarro:

          30.000 casos de câncer de pulmão por ano no Brasil
          85% de taxa de mortalidade
          Custo médio por paciente para o SUS : 9.000 reais
          Custo total estimado : 270 milhões por ano

  2. Não conheço estudos dando conta do sucesso das medidas adotadas na flexibilização das drogas – fizeram e fazem muitos – e não acredito em sucesso.
    Pelo contrário. Todos os estudos, mesmo os enviezados, não demonstram o que querem demonstrar.
    Esse estudo abaixo, por exemplo, não apresenta conclusões mas em vários momentos demonstra piora nos países que caíram nesse engodo.
    https://karger.com/ear/article/28/3/186/823372/High-Prevalence-and-Early-Onsets-Legal-and-Illegal

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