Os ciganos são grupos de pessoas que não tem paradeiro certo. São nômades, divididos em clãs, que perambulavam pela Europa. Estão longe de constituir um povo único e homogêneo.
Considera-se que a Índia, especialmente a região do Punjab, seja a terra natal mais provável dos ciganos. Dali teriam passado ao Egito, e de lá ao continente europeu.
Também são conhecidos como “romi”, e ao longo da história Ocidental foram marginalizados, por conta do seu modo de vida, considerado incompatível com a sociedade europeia.
Os ciganos chegaram ao Brasil, com os navegantes portugueses. As autoridades de Portugal viam nos seus territórios ultramarinos uma oportunidade de se livrar desses indivíduos que eram considerados “indesejados”.
Como os ciganos não possuem um idioma escrito, toda sua história foi escrita por não-ciganos. Por isso, os testemunhos sobre o povo cigano são sempre revestidos de preconceito.
Estabeleceram-se, praticamente, em todo o território nacional, especialmente na Bahia.
Segundo os dados do IBGE, em 2010 havia cerca de 800 mil ciganos no Brasil. A maioria já não vive como nômade e tem endereço fixo em alguma região.
Pois bem. Carmencita, uma bela cigana que percorria o interior da Bahia, foi sentar-se numa praça, perto de Radir, um desconhecido que lhe despertara a atenção. A mulher trazia nos cabelos um grande ramo de jasmins, cujas pétalas exalam, à noite, um aroma embriagador. O homem era arqueólogo e pesquisador e estava fumando um charuto.
A mulher estava de preto, como a maioria das jovens de postura provocativa e namoradora.
Era jovem, alta, bem feita de corpo e tinha olhos muito grandes.
Imediatamente, o homem jogou fora o charuto. Ela compreendeu o gesto atencioso e apressou-se em dizer-lhe que gostava muito do cheiro do fumo, e até fumava quando encontrava papelitos suaves (pequenos charutos). Por sorte, o homem, tinha dois papelitos na carteira e se apressou em oferecê-los. Carmencita aceitou um e o homem o acendeu. As baforadas da cigana e do arqueólogo se misturaram. Conversaram por muito tempo e o homem, então a convidou para tomar um café. Após rápida hesitação, a jovem aceitou, mas antes desejou saber que horas eram. Ele fez soar seu bonito relógio, o que a assustou.
– Que mais não inventam os estrangeiros! De que terra é o senhor? – Disse a mulher.
– Do Brasil mesmo. E você?
A mulher respondeu:
– Você já deve ter notado que eu sou cigana. Meu nome é Carmencita. Quer que eu lhe diga “la bagi”, “la buena dicha” (a sorte)?
Radir quase recuou de horror, ao ver-se ao lado de uma feiticeira.
Na outra semana, o arqueólogo, sem saber, havia jantado com um ladrão de estrada. Hoje, se via a conversar com uma cigana, feiticeira e serva do diabo. Em viagem, tudo pode acontecer.
Entretanto, ele sempre se sentiu atraído pelas coisas misteriosas. Ao sair do colégio, tinha perdido algum tempo, estudando ciências ocultas, e por várias vezes tentara conhecer o espírito das trevas.
Curado, em parte, da paixão por semelhantes pesquisas, dela conservou somente certa atração, a curiosidade de conhecer todas as superstições e descobrir a verdade sobre elas. Naquele momento, dentro dele, exultava a vontade de se informar, até onde se elevava a arte da magia entre os ciganos.
Enquanto caminhavam, chegaram a um “Café” e se sentaram a uma pequena mesa, iluminada por uma vela encerrada num globo de vidro. Radir teve, então, todo o tempo necessário para examinar a sua “gitana”, enquanto algumas pessoas sérias, que lanchavam, admiravam a beleza da jovem.
Radir entendeu que seria ridículo mandar ler a sua sorte num café. Assim, pediu à linda feiticeira que lhe permitisse acompanhá-la até seu domicílio. Ela concordou, mas quis de novo saber as horas. Pediu que ele fizesse soar o relógio outra vez.
– É mesmo de ouro? – Indagou, considerando-o com excessiva atenção.
Quando se puseram a caminhar, já era noite fechada e as ruas estavam quase desertas. Pararam diante de uma casa simples. Um menino veio abrir a porta. A cigana disse-lhe algumas palavras numa língua desconhecida, que o homem não entendeu, mas soube depois que era a Rommani ou Chip Calli, o idioma dos ciganos.
O menino desapareceu em seguida, deixando-os numa sala bastante vasta, onde havia uma pequena mesa, dois tamboretes, uma jarra d’água, um cofre e muitas laranjas.
Quando ficaram a sós, a cigana tirou do cofre umas cartas que pareciam já terem servido muito, um ímã, um camaleão seco e alguns outros objetos necessários à sua arte. Depois, mandou que ele traçasse uma cruz na mão esquerda dela, com uma moeda, e as cerimônias mágicas começaram. Pela maneira de operar, via-se que se tratava mesmo de uma feiticeira.
Inesperadamente, foram interrompidos. A porta abriu-se de súbito e com violência, um homem, envolto até os olhos numa capa escura, entrou na sala, insultando a cigana, grosseiramente. Radir ficou sem entender o que ele dizia, mas o tom da voz indicava que estava irado. Ao vê-lo, a cigana não mostrou surpresa, mas acorreu a seu encontro e, dirigiu-lhe algumas frases, na língua misteriosa de que já se servira diante de Radir. A palavra “payllo” muitas vezes repetida, era a única que Radir compreendia. Sabia que os ciganos assim designavam a todo homem estranho à sua raça. Julgando que ele era o motivo da discussão, Radir esperava uma explicação; já tinha a mão sobre o pé de um dos tamboretes e esperava o momento certo para lançá-lo à cabeça do intruso. Este empurrou rudemente a cigana e avançou para ele; depois recuou um pouco:
– Ah, é o senhor!
O companheiro da cigana reconheceu o homem que o salvara de ser morto, na estrada. E Radir, ao reconhecê-lo, lamentou por ter impedido que aquilo acontecesse.
Enquanto a cigana continuava a falar em sua língua, aos poucos os olhos do intruso se injetavam de ódio, tornando-se ameaçadores. Seus traços se contraíam e a cigana esperava que Radir fizesse alguma coisa para defendê-la. Mas ele estava relutante.
O companheiro da cigana segurou o braço de Radir, abriu a porta e o conduziu pela rua. Deram juntos uns duzentos passos, no mais profundo silêncio. Depois, lhe estendeu a mão, dizendo:
– Siga direto em frente e encontrará a ponte.
Em seguida, voltou-lhe as costas e afastou-se rapidamente.
Radir voltou ao seu albergue, completamente perturbado, maldizendo a hora em que deu atenção àquela cigana. Ao despir-se, sentiu falta do relógio.
Diversas considerações o impediram de, no dia seguinte, prestar queixa ao Delegado, do furto do relógio, ou tentar reavê-lo pessoalmente.
Já havia terminado seu trabalho com o manuscrito dos frades dominicanos e retornou à sua terra o mais rápido possível. Após três meses, voltou a visitar o Convento dos Dominicanos, a serviço. Pelo vexame que passou, tomara antipatia até por Salvador.
Logo que reapareceu no Convento, um dos padres que sempre demonstrara um vivo interesse por suas pesquisas de arqueologia, acolheu-o de braços abertos, exclamando:
– Louvado seja Deus! Bem-vindo seja, meu caro amigo. Nós todos o julgávamos morto, e eu, que lhe falo, recitei muitos Padres-Nossos e Ave-Marias, que não lamento, pela salvação de sua alma. De modo que não foi assassinado, mas foi roubado.
– Como assim?- perguntou Radir, surpreso.
– Sim, o senhor sabe muito bem que lhe foi roubado aquele seu relógio de repetição, que o senhor fazia soar na biblioteca, avisando que era hora de ir ao coro. Pois para o seu regozijo, seu relógio foi encontrado e vai lhe ser devolvido.
– Eu pensava que o havia perdido.- Respondeu Radir.
– O patife está preso e, como sabíamos que era homem capaz de atirar num cristão para lhe tomar uma moeda, morríamos de medo de que ele o tivesse assassinado. Irei acompanhá-lo ao Corregedor e faremos com que lhe devolva seu belo relógio.
– Confesso-lhe que preferia perder meu relógio a depor em juízo, para condenar um pobre diabo.- Disse Radir.
– Oh, não se inquiete por isso! O seu ladrão não é flor que se cheire. Além de furtos e roubos, ele cometeu vários homicídios. Um roubo a mais ou a menos, não modificará sua situação.
O arqueólogo jurou para si mesmo que jamais voltaria àquela cidade. E Carmencita passou a ser uma péssima lembrança em sua vida.
Bom dia minha cara Violante!
Mamãe sempre me dizia, não pare diante de estranhos, especialmente se lhe oferecerem algo que lhe desperte o interesse, sem que v. tenha feito algum merecimento.
Radir, o arqueólogo foi salvo por sua boa ação. Poderia não ter tanta sorte na próxima vez.
Fui uma vez só a Salvador, quando no Pelourinho, no meio de uma multidão, me senti como o Radir. Porém fiquei esperto, nada perdi. Salvador é uma belíssima cidade, porém o turista não pode dar bobeira.
Bom dia, prezado João Francisco!
Obrigada pela gentileza do comentário!
Todo estranho é um inimigo em potencial… Sua Mãe estava certíssima.
Radir escapou, por um triz. Como você disse, ele “foi salvo por sua boa ação. Poderia não ter tanta sorte na próxima vez”.
Em se tratando de estranhos, inclusive ciganos, todo cuidado é pouco.
Bom final de semana!
Violante,
Parabéns pela crônica sobre o povo cigano. Tive oportunidade de conhecer a história desses nômades, e como chegaram ao Brasil. O seu texto é uma excelente aula de história que preenche o desconhecimento e o preconceito que nós temos de um povo cuja a cultura não foi até agora estudada pelos nossos historiadores..
Aproveito a ocasião para compartilhar um cordel de Mariane Bigio, escrito durante o Festival Nacional dos Contadores de Histórias, em Ponta Grossa- PR, em 2014. Espero que aprecie o talento da cordelista pernambucana.
Cordel da Inspiração Cigana
(por Mariane Bigio)
“Eu estava num deserto
Só que era feito de mar
Água por todos os lados:
Eu não sabia nadar.
Perdida sem nenhum norte
Talvez pelo medo da morte
Comecei a delirar…
Avistei longe na praia
Uma miragem, de certo
Algo que jamais se viu
Caminhando ali por perto
Um tilintar de colares
Alfazema pelos ares
No calor do Sol aberto
Tomou forma de mulher
De olhos bem amendoados
E as ondas que beijavam
Os seus pés, então molhados
Regressavam com vergonha
Pelos dedos “ingilhados”
As curvas do corpo esguio
Sob véus se insinuava
E o vestido esvoaçante
Rente ao corpo se encostava
Graças à leve brisa
Que de maneira precisa
Com os tecidos desenhava
Cortando as águas salgadas
A beldade me alcançou
Pensei em pedir-lhe ajuda
Mas algo me enfeitiçou
Encurvou-se, mendicante
E o seu braço estirou
Era como uma cigana
Mas mostrou-me a sua mão
E quem julga aqui, se engana
E recorre à ilusão
As linhas de minha palma
os segredos de minh’alma
A ela pouco serviam
Com sua mão estendida
Com a face enternecida
Eis o que meus olhos liam:
Num piscar de ligeireza
A moça se transformou
Não mais véus e sim farrapos
O seu corpo definhou
Cabelo descolorido
O semblante deprimido
E a voz rouca murmurou
“Os destinos que vislumbro
Tudo aquilo que já li
Cada mão que já toquei
Tudo isso eu perdi
Não existem mais mistérios
Há no mundo um revertério
A descrença mora aqui!
Há quem tape seus ouvidos
Há que não estenda à mão
Com braços entrecruzados
As pessoas dizem “não”
Como vou sobreviver?
O que mais posso fazer
Pra manter-me na missão?”
Eu de súbito senti
Uma enorme compaixão
Como se aquela velha
Tocasse o meu coração
Seu penar em mim doía
Minha alma revolvia
Procurando solução
Foi quando noutro piscar
Eu gritei: eu acredito!
Num instante o seu cabelo
Foi ficando mais bonito
E de novo, outra vez
Eu lhes disse: acredito!
Eu não vi explicação
Nas palavras que eu dizia
Como se entoasse um mantra
Eu apenas repetia
A mulher que definhara
Logo rejuvenescia
Acredito, acredito!
E uma lágrima caiu
Se foi minha, se foi dela
Não se sabe, não se viu
Como era também salgada
Pela maré foi tragada
E a mulher também sumiu
Eu acordei do meu sonho
E ainda estava no mar
Só que não mais à deriva
Recomecei a remar
Não conheço a fundo o rumo
Mas de quando em quando aprumo
Para nunca naufragar
Ainda que contra a corrente
Eu precise navegar
Continuarei andarilha
Com histórias pra contar
Feito uma moça cigana
Que nunca se desengana
Se houver quem acreditar!”
Desejo uma semana plena de paz, saúde, inspiração e felicidade
Aristeu
Obrigada, Aristeu, pelo gratificante comentário e por compartilhar comigo o lindíssimo “Cordel da Inspiração Cigana” (por Mariane Bigio), escrito durante o Festival Nacional dos Contadores de Histórias, em Ponta Grossa- PR, em 2014.
Gostei imensamente!
Um final de semana, com muita saúde, alegria e Paz!
Grande Violante.
Obrigada, Maurício Assuero!
Parabéns, Violante! Linda e bem narrada história! O povo cigano sempre me fascinou. Em minha feliz e linda infância, na minha cidade natal, Crateús, eu sempre visitava as tendas dos ciganos que se encontravam de passagem pela cidade. Aquele linguajar diferente e arrastado (gaaanjão!), e “las bellas gitanas hechiceras”, demasiadamente enfeitadas, chamavam minha atenção. Talvez devido a esse fascínio, senti-me atraído para fazer parte do elenco de uma filmagem sobre “La gitanilla”, novela do grande Miguel de Cervantes, formado por minha turma do primeiro semestre de Letras-Espanhol, da Universidade Federal do Ceará. Inicio o vídeo representando a fala do autor, e faço o papel do pai da Gitanilla, “el Corregidor” (Magistrado), a partir dos 20:00 minutos da fita. Parabéns, mais uma vez! Um forte abraço desde Fortaleza. Boaventura.
Eis o link do vídeo:
https://youtu.be/_m4XwH_v_SU
Obrigada pelo comentário gentil, prezado Boaventura!
Os ciganos acampavam muito em Nova-Cruz (RN), minha terra natal. Eu, ainda menina, era fascinada pelo mistério que envolvia a vida deles. E também sentia medo, pois tinham fama de ladrões. Era um povo bonito, enfeitado e atraente.
Em Natal, uma jovem de família boa apaixonou-se por um cigano lindo. Os dois fugiram e se casaram. Mas o casamento durou pouco tempo. Ela voltou para a casa dos pais, grávida… Com culturas diferentes, o resultado do casamento era esperado.
Sua experiência, ao fazer “parte do elenco de uma filmagem sobre “La gitanilla”, novela do grande Miguel de Cervantes”, formado por sua turma do primeiro semestre de Letras-Espanhol, da Universidade Federal do Ceará deve ter sido fantástica!!!.
Obrigada pelo link do vídeo! Adorei!!!
Grande abraço!
Querida Vivi,
Sancho tá fazendo escola aqui, depois diz que sou eu KKKKKKKkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!
Sempre me fascinou o espírito andarilho do povo cigano, porém jamais teria eu coragem de viver uma vida cigana, pulando de galho em galho, sem destino.
Talvez tenha sido por isso que o jovem Holden Caulfield d’ O Apanhador do Campo de Centeio tenha me fascinado tanto, mesmo eu não me identificando com ele. O fascínio decorre da incerteza que ele provoca na gente por a gente nunca saber se ele está mentindo ou contando a verdade.
Será por isso que Dom Casmurro de Machado de Assis seja tão festejado?
Ótima crônica queridíssima Violante Pimentel, sobre o arqueólogo e Carmencita.
Ótimo final de semana para você e família.
Abraçaço!
Obrigada, querido Cícero Tavares, pelo carinho do comentário!
O espírito andarilho, a beleza e a exagerada vaidade dos ciganos e ciganas eram fascinantes! E despertavam paixões por onde passavam.
Pessoalmente, eu tinha medo dos ciganos, por causa da fama de ladrões que eles tinham. Mas o mistério que os cercava sempre me fascinou….rsrs
Mesmo sem nos identificarmos com a vida cigana, os mistérios que a envolvem são sempre fascinantes.
Deve ser por isso que “Dom Casmurro” de Machado de Assis é
tão festejado. Capitu e Bentinho são personagens inesquecíveis.
Grande abraço e ótimo final de semana!
.
Show de bola, lady Violante!
Hoje me dia, diriam que a briga foi ensaiada, “uma ensenação” e que o companheiro da cigana foi apenas um “tapia”, para concretização do plano de roubar o reluzente relógio do arqueólogo.
Obrigada pela gentileza do comentário, prezado Marcos André!
O companheiro da cigana devia ser um gigolô. E ela, enquanto lia a mão de Radir, deve ter tirado, sutilmente, o relógio do seu braço, usando de “magia”… Como ciganos, os dois eram ladrões…
Bom final de semana!
Queira perdoar os erros grosseiros, grande Lady.
Como diria Assuero, esse corretor ainda vai me causar sérios problemas…
Erros:
*Hoje em dia
*encenação
Não se preocupe, amigo Marcos André! O corretor não respeita ninguém…rsrs